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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Pérolas trágicas do Enem

A tragédia brasileira é tão velha quanto as tragédias de Romeu, de Tristão. Embora não tenha sua plasticidade, carrega o sombrio ar de maldição. Na tragédia brasileira, 500 mil jovens secundaristas zeram suas notas de redação em uma prova e ninguém se importa.

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Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

trilha sonora: creep

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» A tragédia se manifesta de muitas formas. Uma das que mais me impressionaram foi a de Tristão. Eu de calças curtas num teatro vetusto. Sobre o palco a magia de infinitos mundos colidindo e renascendo aos olhos nus.

Tristão apaixonou-se perdidamente por Isolda. Isolda, por Tristão. Não é preciso dizer mais nada. Apaixonaram-se demais. Antevê-se a tragédia.

Tristão morreu envenenado, assim como Romeu. Em uma versão da história, Isolda beija os lábios do corpo ainda quente de seu amado e acaba também envenenada.

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Julieta, mais cênica, enterra um punhal no próprio coração ao contemplar o corpo inerte de Romeu.

A tragédia brasileira é tão velha quanto, porém carece da plasticidade de uma Julieta, de uma Isolda - embora guarde com essas o sombrio aspecto da inevitabilidade. A bem dizer, nem Romeu há na tragédia brasileira, porque ninguém leu Shakespeare. Não há Tristão, pois ninguém vai nem ao teatro nem aos mitos. Na tragédia brasileira, 500 mil jovens secundaristas zeram suas notas de redação em uma prova. A nota máxima vai para duas centenas de candidatos, dentre seis milhões de membros de uma elite que tem condições de fazer o exame.

Mais trágico: ninguém realmente se importa. Nem os jovens nem suas famílias nem nós nem nossos governantes. Tendo desistido de tudo, o brasileiro não desiste nunca.

A bem da verdade, nunca me importei muito com notas - minto, parei de me importar com notas depois de virar professor, apenas -, mas o lodaçal vermelho me deprimiu mesmo assim, esmagando qualquer ceticismo em relação aos métodos de correção, sempre falíveis, sempre falhos.

Não são apenas zeros: é o desperdício de potencial. O que somos e o que poderíamos ser. A vida inteira convivo com este espelho no escuro. Sou tudo o que poderia ser, neste momento, nestas condições? A despeito da falta de grana, da falta de tempo, das obrigações com trabalho, família, sociedade, universo: sou o que poderia ser?

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Ou vela apagada em quarto escuro, à espera de uma faísca tardia?

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Os zeros e uns das redações, enfileirados, formam um funeral de velas apagadas no escuro da noite brasileira. Capengamos em nossa própria língua, e, sem língua, não somos. Sem linguagem ninguém é.

Mas a história sempre prossegue, indiferente aos lamentos, e em breve os reprovados em todos os exames em todos os cantos do país assumirão seus postos como engenheiros, jornalistas, advogados, médicos, professores. Estranhos à língua, estranhos à imaginação. Perpetuarão o ciclo de desprezo pela leitura e pela solitária disciplina do pensamento. Marcharão por todos os cantos da terra.

Os homens ocos. Os homens empalhados.A antítese do que éramos quando crianças, quando sabíamos sonhar e tínhamos ganas de aprender. Lembra?

Mas aquilo é passado, e hoje a marcha segue alheia aos castelos da infância.

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O desfecho dessa tragédia, infelizmente, é a coisa mais fácil de imaginar. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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