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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Lula vítima de Lula

Difícil é ter pena de Lula, que, tendo bons amigos, tem tudo.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
   Foto: Estadão

arte: loro verz

» De todos os vícios de que os pais tentam livrar os filhos pequenos, e ainda de todos os que tentamos evitar que contraiam, o "discurso do injustiçado" é dos mais resistentes.

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Não saberia precisar em que momento esse vírus se inoculou em minha filha pequena, mas os sintomas se tornaram evidentes em certa fase da vida - com sequelas, suspeito, quase certas.

Ainda criancinha, diante de qualquer reprimenda, ela percebeu que a estratégia mais eficaz era a vitimização. Não fez lição de casa? Quebrou o vaso? Deixou a louça suja? Lá vinham lágrimas e protestos contra o bullying na escola, contra as espinhas na pele, contra inimigos invisíveis.

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Como bom pai da era moderna, ouvia a tudo com imensa preocupação. Buscávamos soluções, diálogo, abraço, terapia. Enquanto isso, a louça jazia suja na pia. Mais tarde, passada a catarse, quase sem perceber eu mesmo lavava, secava, guardava. A cozinha cintilava.

Caíra numa armadilha.

Hoje até entendo, faz parte da vida, essa fase. Tento me lembrar das vezes em que me fiz de vítima, quando criança - o fenômeno é especialmente comum entre filhos de pais divorciados, repare. Em vez de assumir a bronca pelo que fizemos, queixamo-nos da crueldade do mundo e da vida. É uma narrativa altamente convincente, que ao mesmo tempo apela à nossa compaixão e à sede de justiça. Pobres de nós, pobres de nós.

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Mas crescemos. Superamos, com a ajuda da vida, dos tapas da vida, o nhenhenhém de vítimas. Ainda que eventualmente tenhamos recaídas, ó vida, ó céus, quando a desgraça se avoluma. Mas a maior parte de nós, quero crer, tenta manter o monstro lamurioso no porão.

Mas eis que na sexta-feira ligo a TV e acompanho, com interesse, a coletiva de Lula, falando justamente como uma indefesa garotinha de seis anos. Mesmos argumentos; nenhuma defesa. Não diz uma palavra sobre a acusação em si, "você deixou a toalha jogada no chão!", ou "você recebeu milhões indevidos", apenas cantilenas mil sobre a perseguição sofrida.

Em geral, por inimigo inominável. No caso de Lula, as elites. Sei que sou elites, pois tenho emprego - o que fica mais raro a cada dia no Brasil em crise -, teto, carro. Também viajo nas férias, leio, vou ao cinema, escrevo aqui e lá e acolá.

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Nunca provei, contudo, um Romanée-Conti - honestamente, sei que nunca irei provar. Jamais pisei em jatinho, em praia particular, em fazenda de milhão de hectares.

Mas o discurso de coitadinho funciona, e entre nós Lula é o Oscar da categoria. Nesse sentido, talvez o juiz Sérgio Moro tenha dado um presente ao mandatário, um palco em que poderá interpretar seu papel mais conhecido, o de vítima das elites. Papel premiado com duas Presidências.

O Lula de hoje ofende, assim, o Lula de ontem. Que diria o metalúrgico pobre sobre o homem que foi presidente por oito anos, tem o maior cachê de palestras do mundo (segundo o próprio, só comparável ao de Bill Clinton), propriedades urbanas e rurais, adegas, luxos que nós desconhecemos?

Que diria o retirante sofrido sobre o homem que diz ser ele, mas já não é? Se Lula é vítima das elites,Lula é vítima de Lula. O de ontem, o de hoje. 

A tragédia do retirante, reencenada entre os tilintares de cristal de murano, vira uma comédia de costumes. Mais honesto seria assumir a narrativa de vencedor, honrando as políticas que implantou no país, o patrimônio material e imaterial que acumulou, enfim, toda a sua trajetória.

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Como já disse em outro texto, votei em Lula por 3 vezes, na esperança de que praticasse o próprio credo. Defendi inúmeras vezes suas políticas. Algumas, ainda defendo (as políticas). Algumas, é fácil defender.

Difícil é ter pena de Lula, que não é criança, e, tendo bons amigos, tem tudo. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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