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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Pássaro entalado na garganta

O ano chega ao fim com a garganta entalada de alguma coisa que não sei dizer o quê

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 

arte: loro verz

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»O ano chega ao fim com a garganta entalada de alguma coisa que não sei dizer o quê. Um corpo estranho, incômodo, encurta a respiração. Mesmo em descanso, estou ofegante. Que corpo é esse que pesa como uma pedra mas pulsa feito um coração? Ali, diminuto, no centro da garganta, como se estivesse indeciso, como se fosse incapaz de escolher entre subir à boca e pela boca viver ou simplesmente deixar-se deslizar para a obscuridade das entranhas - onde encontrará outros corpos estranhos, já silenciosos, já sem palpitações, em paz. Será o próprio calendário, que sem querer engoli, ou que talvez me tenham feito engolir? O livro dos últimos doze meses: confinamentos, incertezas, vaguear sem rumo, passos mambembes, mas também de instantes leves, às vezes risonhos, delicados. Calendário de páginas arrancadas, amassadas e atiradas ao cesto de lixo e calendário de pequenos respiros encaixotados junto a fotografias, bilhetes de viagem, ingressos de cinema, faturas de restaurantes e tíquetes de exposições desertas. Será 2021, em pleno dezembro, entalado na garganta? No entanto, algo se move, algo palpita, e esse algo eu não sei nominar. Se eu soubesse, talvez a angústia passasse. Seria só o que é: homem, mulher, luto, farpa, brigadeiro, brinquedo, macaco. Talvez seja mesmo um bicho vivo. Não um macaco, não nada parecido com o humano. Algo além-homem, algo para lá das minhas condições de linguagem. Algo meio pássaro que durante a madrugada entrou pela minha boca e fez ninho. Que depositou ali um ovo precioso e partiu - para sempre? Imagino que essa célula seja o início de uma ave rara que em algumas semanas abrirá caminho por entre dentes trincados para ganhar o mundo com um canto exótico, um chamado que anuncie a aurora de um novo tempo. Um tempo verdadeiramente novo, em que comerciais de TV, embalagens plásticas, bibelôs de porcelana, margarina e nostalgia não tenham mais nenhum referente, nenhum significado. Tempo em que as gargantas, desimpedidas, possam gritar.«

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Twitter: @essenfelder.Instagram: @renatofelder.  _____________________________________________

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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