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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Papai Noel no cativeiro do shopping center

Será que os pais que empurram suas crianças aos colos dos papais noéis de shopping ainda contam histórias do velho Noel e da magia do Natal?

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Sequestraram o Papai Noel. Juro. Outro dia, fui ao shopping - apinhado e ruidoso feito enxame enlouquecido - e o vi. Cercado por dois capangas, suando aos borbotões, o velhinho encobria os olhos tristes com seu riso frouxo: ho ho ho.

Sequestraram todos os Papais Noéis, aliás, e os obrigam a uma rotina horrível. Em todos os shoppings, ouço dizer, há senhores de barba falsa sob a mesma vexatória condição. A família Noel inteira, empalhada diante de cada vitrine cintilante. Alguns mais gordos, outros mais magros, alguns mais velhos, outros mais moços. Todos, consternados, em cativeiro. O que será do Natal?

Olho para os lados mas ninguém parece perceber - a gente se acostuma com tudo mesmo. Ninguém nota o azedo da situação. Hordas de pais arrastam as crianças pelos braços como se tudo aquilo fosse normal. Mas elas não querem saber de Papai Noel; quando muito, querem saber de presentes. As mais velhas nem isso, seduzidas pelo celular, com os rostinhos imberbes iluminados pela luz de novos pókemons. As mais novas, coitadas, nem podem resistir. Vão no colo mesmo, ao encontro do prisioneiro Noel, e assim são introduzidas ao mundo do Natal.

Penso em gerações que vão saber da existência de Papai Noel assim, por um encontro forçado sob a luz fantasmagórica do shopping. Que tristeza. Será que ainda contam a história do velho Noel e sua incrível mágica de descer e subir chaminés, cavalgar trenós e renas, fabricar incontáveis brinquedos em oficinas povoadas por elfos? Qual o sentido disso tudo, agora que ele está no shopping, triste, distribuindo pirulitos? Agora, que nem chaminés existem mais?

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Mas os pais, embasbacados como todos os pais, sacam seus telefones e fotografam o momento protocolar, como num teatro bem ensaiado. Trocam natais por likes, Jesus Cristo influenciador digital.

Os elfos e os humanos olham como se tudo aquilo fosse normal, como se tudo aquilo fosse Natal.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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