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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Os meus olhos tentam sentir o tempo

Recentemente adquiri o hábito de consultar a previsão meteorológica.

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Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Não faz muito, adquiri o hábito de consultar a previsão do tempo. É algo recente em minha vida e tem a ver com uma série de circunstâncias igualmente novas: mudar de continente, viver em um lugar de clima temperado e temperamental, não ter carro nem garagem nem outros confortos típicos da classe média brasileira, precisar acordar muito cedo para trabalhar, sem a menor noção de como será a temperatura do restante do dia, entre outras coisas. No começo, sentia-me razoavelmente seguro após consultar a previsão - preparava-me para a chuva e para o sol, para o frio e para o calor. Na dúvida, tinha sempre à bolsa um casaco leve, que protegesse do vento repentino. O tempo, afinal, havia sido domado. Estava feliz. Ou melhor, estava tranquilo. É difícil (ou melhor, custoso) cair em uma cultura nova (ou melhor, diferente) como uma folha ainda verde, sem alarde, sem impacto, sem importância. Tinha alguma dificuldade para entender as vozes soltas nos cafés, para expressar meus súbitos desejos de consumo, para perceber quem eram os personagens das notícias. No entanto, eu tinha a previsão do tempo - e já não precisava investigar o céu com os meus próprios olhos atônitos. A aplicação no celular mostrava um círculo amarelo radiante e eu sabia que o dia seria de céu claro e sol forte. Sabia o que significavam a nuvem de algodão, as gotas gordas (em maior ou menor quantidade), o asterisco glacial. Mesmo sem noções de moda, ainda mais a moda de um novo mundo, apoderava-me termicamente do guarda-roupas, que logo foi dividido em duas partes. Dias frios (onde incluí as roupas formais de trabalho e os abrigos de chuva), dias quentes (onde empilhei também a roupa íntima e de banho e os pijamas). De certa forma, todos os dias eram frios e eram também quentes - vestia, afinal, todas as roupas. Não tardou, contudo, para que as coisas complicassem. Às vezes a previsão apontava 40% de probabilidade de chuva; 28% de probabilidade de ventos fortes. Às vezes era perfeitamente indecisa: 50% de chance de uma coisa, 50% de chance de outra, oposta. E eu, que havia me acostumado à divisão do guarda-roupas e à segurança de círculos amarelos e gotas azuis, perdia o chão. Chegava a pensar em não sair de casa, nesses dias. Vou aguardar até que você se decida, ok? - provoquei, inutilmente, o céu. Não era uma tática muito eficiente. O céu dispõe da eternidade para se decidir, enquanto eu só poderia me atrasar por 15 minutos. Tive raiva da imprevisibilidade do tempo, que, com seu sorriso de Monalisa, atirava-me à cara ventos e calores impensáveis. Como poderia me proteger? Quando começou o outono as previsões pioraram sensivelmente. Já não bastava consultá-las com um dia de antecedência, nem mesmo na noite anterior. O espaço entre a previsão e o acontecimento estreitou-se. Em pouco tempo percebi que dava mais ou menos na mesma olhar para o céu ou tentar prever os seus movimentos com a ajuda da matemática meteorológica. É claro que a minha intuição poderia estar enganada, poderia ser menos acurada do que a dos especialistas, mas em certo momento abrandou-se a diferença entre a lógica dos especialistas e minha própria pele. Afinal, onde estavam os especialistas? Não aqui, nesta varanda sob as nuvens, sob o sol. (Honestamente, já não sei se eles existem, os especialistas.) Foram muitas chuvas, muito suor e muitos enganos. Hoje os meus olhos apertam na claridade do dia. Olho para o alto, atentamente, sem tanta pressa (quanta coisa cabe em quinze minutos, meu Deus). Sinto: nem sequer tento prever os seus movimentos. Eventualmente fiz as pazes com o céu.«

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Twitter: @essenfelder.Instagram: @renatofelder.  _____________________________________________

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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