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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|O que falta a Dilma, o que falta a Aécio

Nossos líderes não têm poesia, e, sem poesia, não têm imaginação. Estamos fadados a governos medíocres, portanto?

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Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Sem poesia o mundo termina com um muxoxo, e não com uma epifania. O déficit de poesia na contemporaneidade é grave: ninguém meio pássaro, ninguém livre para o silêncio de formas e cores, ninguém apontando lápis, arquitetando inutensílios. Perhappiness, cadê?

Em tempos de certezas, ninguém se enriquece de incompletudes.

Dentre as coisas inúteis, a poesia é a mais importante. É, como aliás todas as artes, de uma irrelevância tão profunda que só ela, por caminhos tortos, consagra a nossa humanidade. Os animais buscam os locais de mais sombra e comida, os abrigos mais seguros e confortáveis. Também fazemos isso, mas podemos mais. O homem pleno também necessita de poesia. Somos o único animal a contemplar estrelas e sonhar. Não é pouco.

Acho bonito quando o sonho nos move, como indivíduo e como espécie. Mas, quando vou a uma manifestação muito grande, muitas coisas me incomodam. Me incomoda saber que um indivíduo com camisa vermelha será hostilizado em um dia, e que um indivíduo de azul, em outro. Não é um sonho de mãos dadas que toma as ruas nessas ocasiões. O que vejo é apenas o borbulhar da massa.

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A massa é o oposto do humano, embora dele não prescinda. Quando vista de longe, a massa é bastante homogênea. Misturada, sovada, fermentada, a massa é uma só. Impossível distinguir ingredientes únicos; ovos, farinha, leite, manteiga, açúcar etecéteras.

Em todos os aspectos, parece inocente, mas sob o alvo manto oculta algo de perverso, tenebrosas indigestões. A massa parece unir, mas segrega. É o oposto do humano porque dinamita a diferença, sublima a subjetividade, apaga arestas. Dá a cada um uma estranha função e instiga um perpétuo "nós contra eles" nas ruas, nos campos e estádios de futebol, nas escolas, nas prisões, em toda parte. A massa segrega porque desumaniza o homem. Paradoxalmente, destitui o ser humano de sua alteridade e de sua compaixão ao misturá-lo violentamente a outros milhares, milhões, de seres humanos.

O déficit de poesia é uma questão de Estado. De alto a baixo, apequena os brasileiros. O senador Aécio Neves diz que a rua é do povo como o céu é do avião. Nenhum pássaro, nenhuma estrela, nenhuma lua nem nuvem que seja, mas o avião. O céu é dessa estranha máquina de turbulências, segundo ele.

E logo ele! Um tucano imagina que o céu seja uma grande estrada por onde trafegam, triunfais, os aviões. Pode parecer pouco, mas como alguém que acha que o céu é do avião pode promover uma guinada histórica no país?

Não pode, por simples falta de imaginação. 

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Enquanto isso, a presidente Dilma esmera-se numa retórica árida e confusa de "gerentona": pão-pão, queijo-queijo e vice-versa. Difícil extrair das suas palavras algum sentido - muito menos, beleza. Como esquecer, aliás, o inspirado discurso em que conclui que "sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás, o que é algo muito importante"?

Deve ser por isso que amamos Mujica, o ex-presidente do Uruguai. Mujica governou, implantou reformas, saiu-se com propostas ousadas, soluções criativas que o tempo dirá se acertadas ou não. Mas, sem dúvida, tinha poesia - e tinha imaginação. Não é uma questão menor. Não são digressões sobre cães e aviões que fazem um Mandela, um Gandhi, um Churchill (que, de tão inspirado, ganhou o prêmio Nobel de Literatura). O que os forjou foi sobretudo imaginação.

Sem poesia e sem imaginação é impossível voar alto, sonhar um mundo melhor.

Então o céu fica mesmo sendo do avião.

A um estadista não basta dominar os substantivos, pois. Para governar é preciso alargar horizontes, ressignificar o mundo, soprar esperanças, inspirar, humanizar. Sem poesia não há imaginação, e sem imaginação jamais seremos mais do que medíocres.

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Entre cães e aviões, é tudo triste, medíocre, banal. Estamos mal. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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