»Há algo fascinante em um homem, em uma mulher, com um sonho. Alguém que se move com os olhos fixos no horizonte, naquele minúsculo ponto do horizonte que ninguém mais vê – só o sonhador.
Há algo fascinante no modo como os sonhadores se movem, algo muito pesado e ao mesmo tempo muito gracioso – um elefante bailarino. Algo distraído, um jeito de ir andando e colidindo com outras pessoas, com pedras e paredes, suavemente. De ir se ferindo no caminho, de sangrar, de doer, sem alarde. De seguir com os olhos fixos naquele pontinho.
Simplesmente seguir, como se não houvesse outro caminho.
Mas nada sob o sol é imutável, e, se com o passar dos anos não se transforma o sonho, transforma-se o sonhador. Nada no mundo é para sempre.
As mudanças são sutis. Acontecem sem quase ninguém perceber. Ela acorda um dia, como noutro dia, com uma leve ressaca, abre devagar os olhos pesados e força a visão contra o céu da primavera. Acordou angustiada, como se multidões solitárias se multiplicassem no peito vazio. Parece que perdeu alguma coisa. Foi seu sonho?
Ela parece sofrer o tempo inteiro por antecipação: sabe que o ponto no horizonte é só um grão de poeira, uma faísca diminuta e algo espectral que lhe escapa de tempos em tempos. Quando a vida acelera, e sempre acelera, não importa para onde, ela se desespera. Às vezes as coisas correm tão rapidamente que o seu sonho fica para trás. Quando passa a embriaguez, desespera-se. Onde está o seu sonho? Onde está a sua cabeça?
Mas ufa: logo o velho sonho reaparece no mesmo lugar de sempre. Respira aliviada antes de ceder à ansiedade sem fim. E se lhe escapar mais uma vez? E se, desta vez, for para sempre?
Como uma senhora de poucos amigos, enche a casa de telas e trancas depois de o gato fugir uma única vez para o quintal.
O sonho reaparece e escapa outra vez e mil vezes mais. É a vida. O horizonte gira, os dias passam, as pessoas esbarram nela e a desviam do seu caminho original. A menina com um sorriso, a menina com um suspiro e manchas de sorvete no narizinho, está perdida. As pessoas esbarram e deixam marcas invisíveis (embora gigantes, decisivas) no seu corpo diminuto.
Às vezes a garota se distrai ficando com um cara por várias noites seguidas. De manhã, confusa, olha para o lado e ele está lá, dormindo, pesado. Desesperada, ela quer saber onde está o seu sonho. (Ou será que seu sonho é esse cara?) Não! Corre ainda nua para a janela e se debruça sobre o horizonte. Seu coração está a mil. Será que pôs tudo a perder?
Que sorte: o sonho está lá – e até parece estar mais perto, agora. Naquele dia, talvez a garota chegue mais tarde no emprego. Não importa: o emprego não é seu sonho também.
Enfim a vejo sorrir. O sonho está lá e não vai a lugar algum, nunca mais. Seu grão de sonho solidificou em estátua. O doce sonho de menina, a nuvem de algodão e suspiro, é agora mármore e pedra. São sete toneladas robustas fincadas sobre a terra. Domina metade do horizonte.
A menina sorri: não é mais menina. Não é mais nem menina nem é mais sonhadora. A pedra é bem concreta.
Agora, seu sonho se tornou inevitável.
Mas o que acontece com um sonho que se torna inevitável?
E com a sonhadora, meu Deus? O que acontecerá?«
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