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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|O amor nos tempos do corona (corônicas de Portugal #6)

Diários da Covid #6. Saudades do que a gente não viveu.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:

 

arte: loro verz

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»De repente, não mais que de repente, da tela apagada fez-se luz. - Oi, sumido, rs. A quarentena descongelou corações. Ou será o desespero? Um último arrependimento antes do Juízo Final? Não sei. Entre todas as amigas e amigos deu-se o mesmo. Quem não mandou mensagem, recebeu. Os destinatários são sempre os mesmos: ex-amantes, namorados, maridos e esposas quiçá. Ou só aquele crush que nunca virou nada, digamos, concreto. - Como você tá nessa quarentena? Perguntava se aquele ainda era o meu número, já que há tempos não nos falamos. Gastei alguns segundos olhando para a minúscula fotografia no aplicativo de mensagens. Quem era aquela pessoa? Seria possível? Ela? - Fiquei preocupada. Enfim, se quiser falar, estou aqui. Espero que esteja bem. Ampliei a foto. Sim, estava diferente, bem diferente. Não só fisicamente: havia algo diferente assim, no plano abstrato. Algo, algo no ar. Seria a aura dos arrependidos? - Aqui está tudo bem. Quer dizer, tão bem quanto possível. O coração acelerou, músculo curioso, e rememorei em um instante a história toda, do início ao fim. Dizem que a vida passa diante dos olhos no segundo final, mas acho que no segundo inicial também é possível reviver. Talvez os bebês, assim que vêm ao mundo, lembrem da vida uterina - ou de vidas passadas - e por isso chorem tanto. - Vi que lançou livro. Comprei. Lancei. Por enquanto, só digital. Tem um monte de histórias lá, inclusive algumas nossas, de muito tempo atrás. E muita conversa jogada fora, apreciação de passarinho, recital de poesia. - Está em Portugal? Cuide-se, por favor. Eu venho me cuidando. Nem contei que virei mestre de pães e bolos. A meta, audaciosa, é sair da quarentena um tanto mais prendado - já que a saúde mental inevitavelmente é prejudicada. De resto, deixe-me pensar, tenho visto filmes, lido livros, estudado (sem muita concentração, confesso, mas tentativas) e praticado exercícios em casa. Passo metade do dia na cozinha. Eu nunca sei a diferença entre grandes mudanças e grandes permanências - às vezes parece tudo parte de um grande plano, tudo conectado, e às vezes rendo-me ao aleatório. Passa um furacão e muda toda a nossa vida, vira tudo do avesso (do lado de fora ou do lado de dentro) e não sei se recoloco as coisas no lugar ou se aprecio as mudanças na paisagem. Por preguiça, aprecio. No meio da tarde sento na varanda e olho a rua semideserta com uma xícara de café preto. A vizinha olha para mim. Preciso ganhar dinheiro. Para me distrair, recito poesia. Plantei um pezinho de hortelã e o cheiro invade o quarto. O orégano não floresceu. Estou procurando manjericão para fazer um novo pesto.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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