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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Nunca fomos tão hipócritas

A hipocrisia parece ter se tornado o motor da sociedade, sua base, sua condição de existência.

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Talvez seja o tempo, talvez seja o Temer  - ambos cobertos por nuvens cinzentas. Talvez sejam os comerciais da TV, os haters da internet, a massa dos ignorantes: motoristas afoitos, pais condescendentes, mães histéricas, chefes tirânicos, jovens sem freios; homens ocos.

Talvez tudo isso, ao cabo, e muito mais tenha colaborado para o triunfo da hipocrisia.

Ela reina nos anúncios, nos discursos, na ficção e na vida. Tornou-se marca inapelável de nossos tempos, de mãos dadas com o narcisismo e o consumismo, seus irmãos.

Talvez haja tempo mais hipócrita, que não vivi: quando o ateu se ajoelhava perante o papa para escapar da fogueira. Tempo mais farsesco, em que a corte beijava os pés de reis imundos.

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Talvez, mas duvido. Nascido e criado no século 20, é difícil imaginar falsidades maiores que as do 21. A hipocrisia parece ter se tornado o motor da sociedade, sua base, sua condição de existência. Sem disfarces o mundo convulsiona; o mundo dos políticos, dos fanáticos, dos empresários, dos intelectuais.

Esses dias, lendo Bauman, encontrei um amigo: Um mar de hipocrisia se estendendo das crenças populares às realidades da vida dos consumidores é condição sine qua non para que uma sociedade de consumidores funcione apropriadamente. Toda promessa deve ser enganosa, ou pelo menos exagerada, para que a busca continue. 

Toda promessa é deliberadamente enganosa, e, se não o for, decepcionamo-nos. É preciso ser falso para ser célebre. O brasileiro é o povo que mais horas por dia passa conectado às redes sociais: delicia-se com as caras e bocas, as poses de glória. Inveja e se delicia. Então, imita. Se não pode ser realmente bom, por preguiça, pobreza ou pirraça, falsifica-se.

Os pregadores da moralidade são imorais, os defensores da virgindade frequentam bacanais. Há um disfarce para cada vantagem, um oásis para cada miragem. E os tolos ainda caem, afoitos, a boca cheia de areia, os olhos vermelhos. Já ouvi de tudo.

Talvez nunca tenha havido um tempo tão hipócrita, com gente que tornaria pueris os olhos de Capitu. O diabo, cansado de ser enganado, pede sinceridade. A senhora com os joelhos tortos, desenganada, pede sinceridade.

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O cão, maltratado, quer um afago verdadeiro. O artista da fome, desiludido, procura um olhar atento.

Ou talvez seja eu, apenas eu, sem jeito; cansado.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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