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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Nós estamos mais acostumados com os inícios do que com os fins

A gente sabe como o romance começa, mas não sabe como termina.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Nós estamos mais acostumados com os inícios do que com os fins. Vimos quantos filmes? Dez, cem? As mais lindas e ridículas histórias de amor, em que o garoto encontra a garota, o garoto perde a garota, o garoto e a garota fazem as pazes e resolvem ficar juntos. É sempre mais ou menos assim, mudando-se alguns detalhes. E fim. Mas é um fim sem fim. Um fim que congela no tempo um sorriso, um beijo, um encontro de mãos carinhosas, enlaçadas como se nada mais no mundo pudesse separá-las. A película termina e as luzes acendem na sala transformada. A gente nunca sabe o que acontece depois. A sina é justamente essa, não saber o que acontece depois. Quer dizer, nos meus momentos de lucidez cínica, eu desconfio. Viveram felizes até a décima quinta toalha úmida sobre a cama. Viveram entediados até o surgimento de uma nova paixão. Viveram apaixonados até o nascimento do primeiro filho. Viveram sorumbáticos e soterrados pelos tédios da rotina. Viveram com saudade do amor que não viveram. A gente nunca sabe o que acontece depois. Estamos acostumados ao início das histórias de amor: uma troca de olhares em um café, encontros repetidos na universidade, conversa de rede social. O começo de tudo, embora imprevisível como o Big Bang, segue um roteiro razoavelmente conhecido: uma explosão incontida e incontrolável seguida de uma imensa onda de energia que varre do horizonte qualquer resquício de razão. O primeiro encontro. O segundo encontro. O terceiro encontro. A sequência. Mudam-se detalhes. No primeiro encontro, beija ou não, transa ou não, fica ou foge. É pra ser só amizade é pra ser só sexo é pra ser ambas as coisas e muito mais: parceria. Começam as risadas, começam as piadas internas. Os amantes viram pássaros. Que pássaro você é? Um pavão. Riem-se. Os amigos vão sabendo aos poucos, comentando aos poucos. As surpresas vêm e duram só uns minutos. O início de tudo, por mais surpreendente que possa parecer, foi exaustivamente mapeado. Todo mundo sabe como acontece. Já com os fins não estamos tão acostumados assim. Nos fins há mais surpresa, mais dúvida, mais curiosidade. Qualquer coisa pode ser o estopim. Não estaremos preparados. Na imaginação, era como se a película tivesse parado nas mãos entrelaçadas dos amantes sobre a cama desfeita. Na vida real, o filme segue rumo ao desconhecido: dia após dia, cena após cena, convivendo com responsabilidades que ninguém sabe de onde vieram. Ninguém realmente se habitua ao fim, ao script do bom fim. Ninguém sabe o que fazer. Resta esperar e ver. Ou escrever. Escrever: ter coragem de assumir o roteiro do próprio filme. Coragem de assumir a direção e o protagonismo, de se expor ao sol, ao céu, à natureza e ao ridículo de ser mesmo um pássaro, um grande pássaro curioso e barulhento, ligando céu e terra, fim e início, e colocando em movimento a roda da vida. Um rouxinol, um pardal, talvez. Um corvo.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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