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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|No Paraná, um duelo entre silêncio e palavras

De um lado temos os professores em busca de um vocabulário para a sua luta, para narrar a sua história. Do outro, temos a Novilíngua Betoricheana, em que se aglutinam e comprimem palavras para reduzir o vocabulário e com isso castrar as possibilidades de fala. A cada grito, uma mordida. Cada sílaba, uma cacetada.

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Atualização:
arte: loro verz Foto: Estadão

» Não é um fato novo na história do governo paranaense - muito menos na história do país. Mas às vezes para fatos conhecidos, até recorrentes, faltam ainda palavras adequadas.

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Faltam palavras para designar o massacre dos professores e servidores públicos no Paraná, assim como faltaram palavras ao governador para comentar o ato. No primeiro caso, é preciso que se crie um vocabulário completo que dê conta do ato de lançar policiais militares e pitbulls fora de controle contra cidadãos apavorados diante da perspectiva da perda de um direito. Ou melhor, da perda de um direito previdenciário, frise-se, porque a crueldade tem esse requinte: fustigar quem está em sua fase mais frágil, tomando-lhe os vencimentos, expectativas, perspectivas, paz. No segundo caso, parece convir ao governador que não haja mais palavras.

Chegar perto da aposentadoria e descobrir que não haverá o soldo calculado por anos deve ser, imagino, uma sensação para a qual não há palavra. Uma violência que dói mais do que qualquer cacetada, qualquer mordida, qualquer bala. Por isso tantos estiveram dispostos à agressão de hoje: para evitar a agressão de amanhã. A agressão silenciosa que o Estado perpetua diariamente, sob nossa complacência, terceirizando, precarizando, cortando ou restringindo benefícios e dignidades.

Em "1984", o clássico sobre totalitarismo escrito por George Orwell, a ditadura total entendia que era perniciosa a criação de palavras para esses fenômenos todos, para todas as injustiças e violências que o Estado impunha à sociedade - e em especial às parcelas mais fragilizadas, os velhos sem aposentadoria e as crianças sem merenda, as mulheres sem voz e sem vez, os negros sem oportunidades, os miseráveis sem nada.

Palavras têm poder, e mais poder as palavras que designam uma opressão ou uma forma de se levantar contra ela. Palavras como luta, solidariedade, protesto, amor, têm poder. E palavras que ainda nem existem, mas podem estar sendo criadas neste momento, num gueto, num canto, numa escuridão em que os olhos não enxergam silêncio e dor, potencialmente podem abrir olhos ou cerrar punhos. Mudar tudo.

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De um lado, portanto, temos os professores em busca de um vocabulário para a sua luta, para narrar a sua história. Do outro, temos a Novilíngua Betoricheana, em que se aglutinam e comprimem palavras para reduzir o vocabulário e com isso castrar as possibilidades de fala. A cada grito, uma mordida. Cada sílaba, uma cacetada. A nota de esclarecimento do Governo do Estado do Paraná sobre as agressões do dia 29 de abril é um exercício da Novilíngua imaginada por Orwell, de distorção e compressão de sentidos. Fala em "confronto" quando não há confrontação entre homens armados e servidores desesperados, apenas ataque. Em "radicalismo" e "irracionalidade" quando se designa o ato de lutar para manter o direito à aposentadoria. E, como contribuição ao dicionário de política nacional, aponta o sentido último de "black block": aquele que discorda de mim.

Nas ruas não há confronto, apenas trânsito livre de cassetetes, mas acima delas paira o duelo das palavras. Ou melhor, um duelo entre palavra e silêncio. A palavra que os manifestantes, os cidadãos, a história, vão criar para designar esse tipo de ação, de cães contra homens.

E um silêncio autoritário, sufocante, produzido por uma máquina de morder gente. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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