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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|As armadilhas da memória

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Não há nada mais traiçoeiro do que a memória. A memória escraviza e afaga, maquiando fissuras com luzes brancas e pó.

Não é possível viver do passado, dizem os sábios. É preciso dar-se todo ao presente; estas teclas surradas, já sem tinta, do computador à minha frente. O ar fresco da manhã paulistana. Pássaros, televisão, conversa de vizinhos ao longe. Estômago que geme, cheiro de café. O cachorro que ronca como uma jamanta, docemente entregue.

Minhas juntas preguiçosas estalidam, o maxilar estrala, ponho-me em movimento como uma máquina preguiçosa de preencher páginas às sete da manhã de um domingo.

O mundo à minha volta agora é isto.

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O mundo dentro de mim, contudo, não tem fim. E nele a brisa desta manhã se mistura a outras, de outros tempos, intensidades e latitudes. O cheiro de café me transporta para a redação de um jornal, onde varava madrugadas antecipando, burilando e editando textos (e fatias geladas de pizza).

O mundo à volta é, no mais das vezes, apenas a porta de entrada para a imaginação. Um som remete a outro. O déjà vu constante de vê-la atravessando seminua o corredor do apartamento. Leva uma fatia de doce à minha boca. Cantarola Beatles. Algum travesseiro conterá, ainda, o cheiro dos seus cabelos.

A memória é uma mistura de reminiscência e imaginação. Traiçoeira, descola-se dos fatos. Aquela noite em que caminhamos pela praia foi verdadeira? Talvez. Fomos a Paraty?

Talvez a memória seja em realidade o avesso de si, antecipando os dias que virão. Guardei com carinho a memória dos nossos dias na Europa, amor, e das vernissages no Rio de Janeiro. Noites que ainda não estrelaram.

A memória é ardilosa. Edulcora fantasias com cores e sabores impossíveis. Quanto mais fixa e obsessiva a lembrança de algo, mais fantasiosa. Reencontrar aquele lugar, aquele prato, aquele canto ou aquela pessoa há muitos anos desaparecidos, mas que fermentaram na memória por anos sem fim, é frustrante. As balas Soft eram horríveis. "Caverna do Dragão" era simplório.

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O pensamento inflado de fantasias, liberto da gravidade do cotidiano, devaneia. O que é cultivado apenas na memória quase sempre é recheado de suspiros, apenas; uma bolha que estoura ao toque. Nada pior do que ver um filme ou revisitar um prato que durante toda a sua infância pareciam a melhor coisa do mundo. Não são.

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As melhores lembranças são aquelas que não nos assombram. Aquelas que julgávamos esquecidas. Repousavam, apenas, mais ao sul; mais ao coração, o deus silencioso dentro de nós.

Uma troca de olhares aos oito anos de idade, que parecia desaparecida durante toda a adolescência, ressurge. E agora que vocês são adultos, ou quase adultos, reencontram-se. Sem fantasias prenhes de ar, sem delírios de grandeza, manias de princesas. Um diante do outro, inesperadamente, e; se reconhecem.

E ele, que parecia não lembrar mais de você, revive as coisas mais bonitas. E ela, que já correu o mundo, de repente retorna. Olham-se, apenas, sem fantasia. Estão, de novo, em casa.

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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