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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Medos paulistanos

Que vida levamos, que cidade queremos?

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Atualização:

 

 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Neste dia em que se celebra o amor incondicional por São Paulo, capital que adotei há pouco mais de uma década, peço licença para falar de medo; dos medos que a cidade desperta.

Num café qualquer, o diabo de Nietzsche sopra aos meus ouvidos, atravessando o mel dos que declaram incessante paixão. Ele me diz que o medo abre os olhos, enquanto o amor os fecha. Diz que o medo fez mais bem para o homem inteligente do que o amor, pois fez querer descobrir o que é, enquanto o amor fez ocultar o que é e imaginar o que poderia.

O medo, ainda que distorça, ainda que superlativo, incita à curiosidade, enquanto o amor é só gozo e satisfação. Mas quem não gosta de gozo e satisfação, e como viver sem um pouco de ilusão?

Amar ou temer São Paulo, hoje?

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Como todo habitante, amo ou odeio a cidade muitas vezes ao dia - às vezes, simultaneamente amo e odeio. Deixarei que outros falem de amor. Hoje, vasculho medos paulistanos.

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Mesmo andar em São Paulo é temerário. Um código implícito, em parte alguma escrito, vai sendo apreendido com o tempo. Existem lugares para andar e lugares para evitar, cuja única função, hoje, parece ser precisamente esta: meter-nos medo, e, através do medo, forçar-nos à reflexão. O que isso significa?

 

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A certas horas (ou todas?), certas regiões da cidade (ou todas?) nos convidam ao horror. O noticiário sobre São Paulo, capital do Brasil Urgente, capital do Cidade Alerta, também intimida. A violência está em toda parte.

Mas logo entendi que o medo do crime era um medo superlativo, e abri as janelas do carro. Então o ar pode entrar, e as fraquezas se tornaram diversas, até pueris: sinto, como o coelho de Alice, a neurose constante de estar atrasado. Tremo diante de congestionamentos-surpresa. Aprendi a ter medo do trânsito: dos carros e de seus motoristas, das motos, ônibus, caminhões. E até de ciclistas estressados.

Pavor também do estresse, do infarto de meia dúzia de conhecidos aos trinta anos de idade, cujos nomes repasso mentalmente diante de uma fechada no trânsito. Receio que São Paulo me expulse da Terra, pouco depois de eu ter chegado.

Nos primeiros anos, além da violência (um medo que nem era meu, mas que me contaminava pelos televisores e pelos familiares, sempre muito preocupados), o medo mais constante era do ar, da poluição que me deixava doente, sangrando, sem conseguir respirar. A isso o corpo se adaptou - a tudo, talvez, se adapte.

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Na vida adulta, agora, surgem medos financeiros. Medo dos preços, medo do custo de vida na cidade, do desemprego, das crises, falências. Medo da força da grana, das caixinhas compulsórias de natal, da flanelização das gentes à espera de uns trocados numa cidade em que nada se quer de graça.

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Sobre todos os medos, violência, saúde, tempo, grana, um, contudo, gravita. Um tremor silencioso, de pores do sol e cerveja, de que a vida seja mesmo isto, apenas: acordar, trabalhar e dormir. Ganhar para gastar. Gastar para ganhar.

E que escorra tão lentamente como o trânsito na Rebouças ao meio dia, quase sem a gente perceber, dentro de um casulo blindado.

Até que chegue ao seu destino inexorável. «

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Atualizações todas as segundas-feiras.

Twitter: http://twitter.com/essenfelder

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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