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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Flores na pandemia (ou: 2020, um ano confuso)

Em meio à pandemia bruta, semeando morte, a vida, também bruta, espalhava flores sobre a terra devastada

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 

arte: loro verz

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»É quase Natal e nesta altura deveríamos estar fazendo o balanço do ano, a fogueira das impurezas e o arado do campo para que o novo, o belo, o auspicioso pudesse renascer em paz - em nós, no mundo. Não deu. 2020 não deu. Penso em que Cristo - pois devem haver muitos Cristos por aí, de muitos tamanhos, cores e sexos - poderá emergir deste 2020. O sumo bem redentor, depois de tantos funerais? Ou um Cristo das lamentações, que se ponha a chorar conosco, impotente como nós mesmos, enquanto os sinos dobram e dobram e dobram mais uma vez, à passagem de outra família enlutada? Moro ao lado de uma igreja, cá em Portugal, daquelas que conservam ainda um imenso sino de bronze. Ao longo do ano fui aprendendo a gramática do sino: o anúncio das horas cheias e das meias horas, a convocação para as missas, a celebração de casamentos e batismos, o toque fúnebre. O agora onipresente dobrar dos sinos que anunciam uma partida. Mais uma partida. Dois mil e vinte foi um ano confuso, diz-me um velho amigo,  igualmente confuso ante o reflexo do ano que (quase) passou. Brincamos que não passa, mas sabemos que passa. Tudo. O que fica depois que passa é o grande mistério por descobrir.  É um ano confuso porque em meio à pandemia bruta, semeando morte indiferente a tudo e todos, a todas as ideologias e classes e categorias, a vida, também bruta e também indiferente, espalhava suas flores sobre a terra devastada. Morria alguém, nascia alguém. Uma família se separava, uma família se anunciava. Casamentos e partidas, demissões, falências, respiros e pequenas vitórias. Entrava no hospital. Saía do hospital. Refletimos longamente sobre a vida e, no meio dessa reflexão, uma flor nasceu aos meus pés. Era uma flor feia, mas era flor: não se importou com a minha opinião e espalhou raiz. Não se trata de valorizar as lições da pandemia, fazer do limão uma limonada, ver beleza na desgraça. Não quisemos nem por um segundo pensar nisso. Não havia (nem haveria, cremos) nada de positivo associado aos duros tempos de pandemia. Era mais uma questão de reconhecer que a vida não era só aquilo, medo, morte e vírus, e que precisaríamos dar um jeito de lidar com aquilo que acontecia longe da moléstia. Um jeito de lidar com a imensidão da vida que, indiferente ao medo, à morte e ao vírus, espalhava raízes. São tempos confusos. Logo Cristo nascerá. Um Cristo, ao menos. Um outro. Talvez nos diga o que fazer com o emprego novo, a criança recém-nascida, o amor redescoberto, o sorriso. O que fazer com o lado pulsante da vida. O que fazer quando pararmos de chorar. Isso tudo esteve aí, neste ano confuso. Alegrias estranhas. Elefantes simpáticos, de gravata borboleta e fraque, tutu e sapatilha, sapateando pela sala. Caetano ainda canta. Estamos confusos. Poderíamos chorar, apenas. Poderíamos rir, somente. Gratidão. Mas como? Raiva. Mas só? Aguardamos um vento fortíssimo que dissipe ao menos parte dessa confusão, que clareie ao menos uns metros de horizonte. Não é que queiramos fazer grandes planos. Queremos apenas resgatar as velhas esperanças.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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