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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|O fim do mundo, o começo da vida

Os fantasmas de hoje são os ridículos de amanhã. Do que você tem medo, agora?

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Atualização:
 Foto: Estadão

O fim do mundo, o fim da vida em vida, o fim de tudo. O diabo, o diacho, o demônio. Dor de estômago, gastrite brava, azia. Tremor, pânico. O que tira o sono. O apavorante tem muitas faces, todas horríveis, que mudam conforme a altura da estrada.

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Em cada fase da vida um demônio nos acompanha, ardiloso. O bebê chora quando sozinho. Não quer sair do colo da mãe. Difícil mesmo é passar o dia sem peito e carinho; o resto, imagina, é fichinha. Não se aborrece com trabalho, dinheiro, desempenhos. Apavorante, diz, é ficar sozinho. Ou, quem sabe, ser roubado. Quando lhe levam embora o carrinho, a chupeta, o paninho. Todas as noites ter de morrer, separar-se do mundo. E todas as manhãs, com espanto, renascer. Reaprender.

Tinha pesadelos imaginando que seria esquecido na escola, quando criança. Dava meio-dia e todos iam embora rapidamente. Meu pai demorava. O medo de ficar ali por todo o dia, até o anoitecer. Quem sabe alguém me sequestraria. Alívio quando aprendi a voltar sozinho.

Quebrar um brinquedo novo, ou apenas muito querido, era dolorido. Ser pego no flagra: que todos soubessem que fui eu a quebrar o vaso, a queimar o tapete, a manchar a parede.

Tudo isso era o fim do mundo - ao menos por alguns segundos.

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A sorte é que o fim do mundo só durava segundos.

Mas o verdadeiro fim do mundo, a pior coisa da vida mesmo, era repetir na escola. A ameaça de repetir uma série. Perder o contato com os colegas, ficar para trás no jogo da vida, passar um ano inteiro-inteirinho reafirmando minha ignorância.

Depois, não passar no vestibular. A sombra de uma prova amargando todas as coisas. Não passar. Outro atestado de ignorância, de burrice. Uma espécie de insuficiência para a vida, um sentir-se quebrado, peça defeituosa, descartado.

Por que somos tão competitivos?

Passei, mas os medos não passaram. O fim do mundo estava ali, logo adiante. E se Ana não me notasse? E se Maria nunca mais retornasse? Se Ana Maria não me quisesse nem ver? O fim do mundo então era ficar sem romance, sem sexo, sem atenção.

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Desde que se descobre o sexo, começa um outro fim de mundo.

Mas Ana passou; Maria passou; Ana Maria passaram.

Alguns mundos encontram melhor refúgio em fotografias.

Jovem, temia não encontrar emprego, não me adaptar, ter escolhido o caminho errado, terminar sozinho. Uma verdade podia ser o fim do mundo: eu não quero sair, eu não gosto de você, eu não curto essa banda nova, prefiro dormir.

Se existem muitos mundos, muitos fins também existem. E em cada mundo que criamos existe algo a preservar. Algo que temer, algo por que lutar.

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Hoje eu dou risada de tantos velhos fins de mundo. Eu acho engraçado temer ser esquecido pela mãe, ser esquecido para sempre na porta da escola. Acho tão besta reprovar um ano na escola, numa prova de vestibular. Tudo tão banal. Não é nisso que está o belo e o feio da vida. O sublime não cabe em provas, em bônus, em tapas nos ombros bem alinhados.

O meu mundo mudou: os demônios cresceram (e mudaram) comigo. Chegou o dinheiro e temi não poder pagar o aluguel, não ter de onde tirar o sustento. Quebrar. Aconteceu. Segui.

Na velhice, o medo da morte - menos sua do que dos entes queridos. Mas a morte é irmã da vida, e acabamos nos irmanando também ao medo e à saudade, e sobre-seguimos.

A cada mundo um bicho, um grilo, uma paralisia.

Eu não temo mais o que eu temia. Mas temo alguma coisa, alguma coisa me arrepia - uma coisa diferente a cada dia.

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Às vezes a sombra se alonga, e definho.

Choro. Também rio. Sinal de que não estou parado no caminho.

Aos 22, uma gravidez inesperada. Grandes responsabilidades, barra pesada. Focar, trabalhar, sustentar, educar. Fim do mundo?

O fim do mundo é o começo da vida.

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

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Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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