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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Façamos a retrospectiva do nosso futuro

O ano termina e com ele temos de dar adeus a tantas coisas.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 

arte: loro verz

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»É hora de se despedir de 2021. Todo tipo de aplicativo esfrega contra os olhos as retrospectivas do ano, fazendo presente aquilo que passou. Com muito esforço, tento o movimento contrário. Só as retrospectivas do futuro deveriam me interessar, agora. As retrospectivas dos erros que ainda não cometemos, dos abraços e beijos que não demos, das caminhadas e cantos da cidade que, de repente, redescobrimos. Só as primeiras vezes. O ano termina e com ele temos de dar adeus a tantas coisas. Não é só a epiderme do calendário que cai diante de mim, como as escamas de uma cobra. É sua carne. A carne dos dias se vai. Hoje, servida diante dos meus olhos como uma iguaria antiga, parece apetitosa. Será?   Também me deixo levar pelas sereias, no silêncio. Folheio o álbum de fotos na madrugada insone (mais uma vez). Em meio a imagens sem foco e sem sentido (agora), milhares de pequenos registros do dia a dia que é preciso botar para trás. Xícaras de cafés que já terão esfriado, cálices de vinhos que já terão azedado, drinks aguados, buquês de flores cansadas, pequenas reformas, pequenas reuniões de amigos, pães, pedras, praias, catedrais, cortes de cabelo, salas de aula, viagens, vinhas encantadas, semanas de calor e praia que passaram num instante, como se nunca jamais tivessem existido.  Pores-do-sol e passeios à beira rio, comida farta, comida preguiçosa, cachoeiras, plantas, beijos, sorrisos, cortes na mão, queda na escadaria, acidentes, aniversários, neblina, madrugada. Depois, escuridão.  Já é dezembro. Varro a pele da serpente ao som de um blues. Estou cansado das retrospectivas, mas as escamas aderem a mim e é difícil arrancá-las. Arranho-me furiosamente, até sangrar. Só me interessa o futuro, repito, vestido de passado. Só me interessa o que virá, repito, com os olhos vendados.  O sol começa a se pôr, dentro de casa. Ainda preciso fazer uma boa faxina de fim de ano, cozinhar, levar o cachorro para longas caminhadas. Urgências multiplicam-se como incêndios nos cantos da casa.  No fim não existem mais segredos nem coisas por falar. Um dia é vasto Até o entardecer Então acaba.«

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Twitter: @essenfelder.Instagram: @renatofelder.  _____________________________________________

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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