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Opinião|A sensação de ter esquecido algo

Estou quase certo de ter esquecido algo – no entanto, não consigo descobrir o quê.

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Estou quase certo de ter esquecido algo - no entanto, não consigo descobrir o quê.

Ando com a cabeça cheia. Todos dizem: você anda com a cabeça cheia. Às vezes os pensamentos engancham seus longos rabos felpudos num galho qualquer e rodam e rodam em círculos, asfixiando o tronco. Arfo. Exaurido pelos exercícios do ar, pelos músculos da imaginação, negligencio a carne. Atrofio.

Mas loucura nenhuma resiste à realidade, então a fome, a sede, a urgência de ver Maria me arrancam do devaneio como um cão que já desperta faminto.

Tenho um checklist básico para todas as vezes em que saio de algum lugar: carteira, celular, chave. É fácil gravar, pelas aliterações. Prossigo em ordem alfabética. É uma lista breve porém requintada: carteira, celular, chave.

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A carteira vai no bolso de trás da calça, no lado direito. A chave, no bolso esquerdo dianteiro. O celular às vezes segue no dianteiro direito, às vezes vai em mãos. Não que eu tenha com quem falar e realmente precise de acesso rápido ao aparelho. Não que espere notícias de alguém. Não que tenha algo a dizer, muito menos. No mais das vezes o celular segue silencioso e discreto como um aconchegante maço de cigarros em minhas mãos.

Na verdade o telefone não tem papel de sociabilidade em minha vida. Ao contrário, é meu instrumento de contrassociabilidade, antissociabilidade. Ou melhor, de prevenção à sociabilidade. A um gesto rápido afasta qualquer possibilidade de contato. Abrevia conversas indesejáveis. Distrai com seus jogos e mensagens comerciais as esperas em filas, cafés, bares e outros ambientes abarrotados. Recentemente descobri que, se conecto o fone de ouvido ao aparelho, posso atravessar o Mar Vermelho sem ser incomodado.

Um celular pode ser uma ponte com e para o mundo, mas também pode afastá-lo de você - assim como a carteira aproxima e afasta as pessoas com o dinheiro que ostenta.

Um ponte para um lugar muito distante é uma ponte para o nada.

 

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Às vezes saco o celular e finjo conversar (ou converso de facto, porque o que é o mundo senão os testemunhos que dele fazemos, falsos ou não?). Falo com gente que inexiste, gente intrigante, interessante como a jovem que fez um pacto com os passarinhos para ganhar asas, mas, enganada pelo curió, terminou com um coração de 2 centímetros batendo 240 vezes por minuto no peito atarefado. Ou a cantora de jazz que percorreu o Brasil inteiro no lombo de um cavalo em busca de um som de saudade. Essas gentes mágicas, ilusórias até que eu lhes testemunhe verdadeiras, às vezes me distraem da gente que faz proselitismo religioso, acadêmico, moral. Das gentes ignorantes em geral.

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Carteira, celular. O mundo à volta pode se tornar tão distante quanto Pasárgadas; ao menor descuido nosso império de realidade naufraga.

Mas isso não importa, desde que não esqueçamos a chave. As palavras, em seu estado de dicionário, não te perguntam se trouxeste a carteira, se trouxeste o celular ao reino da poesia. O que querem saber, afinal, é: trouxeste a chave?

Tateio o bolso. Está lá, prata retilínea fria ao contato.

Vivo com a sensação de ter esquecido algo. Mas, para viver, só preciso daquela chave.

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

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Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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