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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Em tempos de Carnaselfie, ninguém quer parecer ridículo

No Carnaselfie, as regras são as da cinematografia.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:

»Já não dá mais para escapar: é Carnaval, a festa dos tímidos. Foi Rubem Braga quem cunhou a expressão, e ele se assombrava diante da conversão dos rapazotes e raparigas recatados do cotidiano em alegres piratas, marinheiros e havaianas na avenida.
Não sei se o paralelo, contudo, é possível. O mundo mudou. Com a proliferação das redes sociais, aliás, parece que não sobraram recatados. Todos ali se expõem - todos criam suas fantasias e nelas investem, dia após dia, desfilando não de piratas, mas de hipsters, intelectuais, sensíveis, engajados, despreocupados, desconstruídos, pós-modernos, bacanudos.
Na avenida ou nas telas, é tudo fantasia. Na essência, o homem é o mesmo: um medroso. Massacrado pelo entorno, assoberbado pela vida, o homem só quer uma trégua dos problemas, de tempos em tempos.
Esquecer os balanços e mensalidades para flertar, pular e se embebedar.
Sempre gostei de ver o Carnaval dos outros, mas até para a festa dos tímidos eu era tímido demais, então nunca tive o costume de pular em bloquinho ou blocão. Mas, se antes eu me deliciava com a transformação das gentes, no início do Carnaval, vendo dois milhões de foliões no Baixo Augusta, em São Paulo, demorei a entender o que incomodava.
Era o Carnaselfie. O Carnaval sem transgressão - não dos outros, não dos corpos, porque isso só disfarça uma violência intolerável. Não a transgressão que perturba as meninas que não querem contato, ou os lojistas que não querem vandalismo, ou os moradores que têm horror às fontes de urina brotando de suas calçadas. Era o Carnaval sem transgressão subjetiva, de si. Sem subverter a si próprio para alegrar o mundo com a versão mais alegre e autêntica de si.
Nas ruas, os foliões saltitam com o celular nas mãos e enchem suas redes sociais de fotos, posam uma felicidade em ângulo plongé atentos aos detalhes de luz, enquadramento, likes e shares.  Tudo para sair, mesmo no sagrado ridículo do momento, bacana na foto.
O desbunde é regrado não por pais e mães, que há muito desistiram de censurar a festa. As regras do novo Carnaval são as novas regras da cinematografia.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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