Foto do(a) blog

Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Em baixa definição

PUBLICIDADE

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
arte: loro verz Foto: Estadão

Às vezes a vida é bem melhor na TV. Na tela tudo parece mais simples: mocinhos são mocinhos, bandidos são bandidos. Os sorrisos são sempre brancos, os imóveis estão sempre limpos, as roupas estão impecavelmente passadas. Pessoas lindas, gentes maravilhosas, nenhum problema que não possa ser resolvido em um ou dois capítulos. E, ainda que assome um terrível drama, um drama de morte, o tempo magicamente acelera até que a negação vire raiva vire negociação vire depressão vire, ao cabo de 30 segundos, aceitação. E todos voltam a exibir os seus dentes perfeitamente brancos.

PUBLICIDADE

Quando a televisão de alta definição chegou em casa, a vida pela tela pareceu ainda melhor. As cores eram mais bonitas e vívidas, os movimentos todos eram incrivelmente nítidos. Havia uma profusão de detalhes até então despercebidos. Os jogos de futebol, desfiles de Carnaval e documentários sobre a natureza pareciam em alguns termos superiores à experiência concreta de ir a um jogo de futebol (o que nunca fiz, e ok), de conhecer a Sapucaí (o que nunca fiz, e já envelheci) ou de acompanhar a milagrosa eclosão de ovos de tartaruga em Fernando de Noronha (o que nunca fiz, e um dia farei). Mesmo pouco afeito à TV, passei a investir mais noites no exame dos dromedários egípcios ou dos coalas australianos, hipnotizado.

Até que saí para ver um jogo de futebol na casa de um amigo. A turma toda reunida, embalada, e eu me frustro: a TV não era HD. Pela primeira vez em trinta anos eu percebia os quadradinhos feios dos pixels e aquilo me irritava. Tornara-me um neurótico de alta definição. Depois de um mês de HD, era difícil retornar aos tijolinhos da TV tradicional. Virei refém de um conforto até então inexistente.

Então surgiu a TV 4k, com definição quatro vezes melhor do que a HD. Vi uma dessas pela primeira vez na porta de uma loja de shopping em São Paulo, recentemente. A tela imensa monopolizava atenções, enquanto o vendedor, ao lado do aparelho, apenas sorria, confiante. Estava ali para impressionar os passantes. A TV, não o vendedor.

Olhando um e outro, aliás, era nítida a desvantagem do vendedor. A TV exibia algum documentário étnico, com muitas cenas de rua, de gente como a gente. Mas a imagem tinha tamanha nitidez, brilho, vivacidade, cor, contraste, que o vendedor ao lado da tela, ele sim, parecia uma pálida projeção de si mesmo. O vendedor, assim como eu, assim como todos ao meu redor, era uma criatura de baixa definição.

Publicidade

Um fantasma, uma daquelas sombras que apareciam nas antigas TVs de tubo.

Corri para o banheiro. Olhei-me no espelho. Era fato que a minha resolução estava aquém de qualquer parâmetro aceitável. Quem me compraria, assim? Quem me levaria para casa, quem me instalaria, triunfalmente, no quarto, sobre a cama? A solidão do mundo sobre mim: a solidão de uma certeza. Senti-me borrado, pixelado, feio. Serrilhado. Amarrotado. Tremendamente desagradável, sem brilho, sem cor, sem vivacidade. Branco e pálido, sem graça. Nem mesmo o som da minha voz era bom e potente como o das pessoas na TV 4k, que falavam já em estéreo Dolby Surround X (qualquer coisa assim cheia de palavras difíceis).

Olhei à volta: minha vida inteira estava em baixa definição. Meus relacionamentos, meu trabalho, o trajeto até a padaria, os slides da última aula. Tudo parecia mais pálido do que a vida através da TV.

Senti-me a projeção desatualizada de alguma outra vida, o reality show antiquado de alguma entidade superior. Há pouco tempo, aliás, um cientista da NASA chegou a levantar muito seriamente a hipótese de sermos apenas projeções dentro de um videogame cósmico. Somos, enfim, personagens de um Grand Theft Auto, de um The Sims. De um jogo que simula com precisão e graça a vida real - e, em muitos sentidos, supera-a. Estamos dentro da Matrix.

Não me afeto um milímetro com essas conclusões. Há anos sei que minha vida e suas tragicômicas reviravoltas foram na verdade roteirizadas por um filhote de Woody Allen com Sofia Coppola - com toques surrealistas fellianos e imensas pretensões francófonas.

Publicidade

Não me incomodo mesmo de ser uma projeção, de ser o personagem de um videogame que é meio pornochanchada, meio dramalhão mexicano.

O que me incomoda mesmo, isso sim, são os malditos pixels.

O que me aborrece é a minha baixa definição.

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.