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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|elogio ao tédio

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Janeiro é o mais cruel dos meses. Semeando o tédio, fazendo brotar do asfalto ondas de calor sufocante.

Depois da euforia glorificante de dezembro, o mais atabalhoado dos meses, janeiro chega como um barco que cresce lentamente no horizonte. Em dezembro vidas inteiras se espremem, todos os desejos e penitências, no breve espaço de trinta e um dias. Então vem janeiro e sua pasmaceira suave; carícia de mãe nos cabelos do menino. Janeiro, aliás, não vem; retorna. É a volta para casa.

Há tempo para tudo, em janeiro. Tempo para morrer e criar, tempo para torradas e chá, tempo para todos os planos e decisões que dezembro nos deixou.

Mas no arrastar das horas, nas cidades vazias, na inércia do recomeçar a monotonia se aprofunda.

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Livres da escola, as crianças sentem-no primeiro: o tédio. A ausência de rotina faz a rotina pesar como nunca. Amargo passar o tempo sem rumo, vagando pela casa, pelo shopping, pelo parque, num calor de trinta e dois graus. O tédio, monstro voraz, é apenas momentaneamente aplacado pelas voltas ao redor do rabo. Quer sempre mais.

O tédio infantil é implacável. Eu, que imaginava que as crianças se distraíam mais facilmente do que os adultos, capitulo. Meu tédio eu tapeio com um livro, uma volta com o cachorro, um cinema; dedilhar o piano, tomar sorvete, escrever, rasgar o coração. O tédio infantil é mais urgente, mais exigente; mais.

Ou talvez não seja exatamente isso. Talvez o que me aplaque seja a descoberta, recente, de que o tédio me tem sido um aliado inestimável.

Há tempos me disseram que "só pessoas entediantes se sentem entediadas". Fiquei preocupado: frequentemente me sinto entediado. Mas não tardei a perceber que aquela era apenas uma frase de efeito, vazia de sentido. Eu, que me entedio com certa facilidade, tenho tido o tédio como força motriz em minha vida.

Em paz com o tédio, extraí dele lições. Aprendi a chamá-lo de prenúncio. Depois do tédio sempre veio o gênio; a musa rara. Reconheci a diferença do tédio criativo e fecundo do tédio estéril; a prostração, o comodismo. Aprendi a contornar os meios termos tediosos de um compromisso sem paixão. Como provocação a mim mesmo, o tédio me impulsionou a vida inteira à criação.

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Experto na matéria, aprendi enfim a evitar gente desinteressante. Entediado sem dramas, tornei-me mais seletivo. Não me demoro mais nem na euforia nem na depressão. Reconheço o tédio e o respeito.

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Quantos gênios não terão sido impulsionados por essa sensação? O tédio é o desejo por desejos, paixão por paixões.

Dezembro me fez rascunhar a lista de tudo o que pretendia fazer no ano seguinte, todas as paixões pretendidas. Janeiro, o mais entediante e cruel dos meses, fez-me seguir adiante. Riscar os primeiros itens, cimentar os primeiros planos.

Eu lembro da menina que um dia fez troça do meu tédio, satisfeitíssima com sua própria vida. Cercada de gentes maravilhosas em vernissages e baladas. Ontem a revi, e a vi através dos anos, ostentando o sorriso triunfal dos que jamais provaram a profunda monotonia.

Sorria com todos os seus dentes. Estava, contudo, sempre no mesmo lugar.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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