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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Educar é impossível?

Grade curricular, disciplinas, bedéis, monitores, controle de presença, recuperação. Até o vocabulário da escola evoca uma prisão. Sendo assim, como despertar o interesse pelo aprendizado?

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
  Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Curar, educar e governar são ofícios impossíveis. A colocação, que não sabemos muito bem se de intenção dramática ou cômica, aparece em dois textos de Freud. Há quase cem anos tem sido interpretada de diversas maneiras - especialmente porque o pai da psicanálise nunca se preocupou em aprofundar o tema.

Na semana passada, quando soube que Renato Janine Ribeiro seria o novo ministro da Educação, lembrei de imediato da perturbadora máxima kafkiana - quero dizer, freudiana. Educar é impossível.

Mas por quê?

Começo a pensar no assunto, avançando debilmente por entre tijolos e unicórnios. É difícil pensar muito tempo, contudo, e avançar nesse jardim de bifurcações sem que me assaltem lembranças de minha própria educação. De início vêm algumas palavras-chave à mente, como "fórmulade Bhaskara", "cateto", "hipotenusa", "movimento uniformemente variado", mas confesso que elas pouco me dizem. Bhaskara lembra máscara, que lembra carnaval, e logo penso em alegorias momescas. Cateto evoca cateter e todo um dicionário médico quase mórbido. Hipotenusa associo a medusa, a górgona dos cabelos de serpente. E o movimento, bem, com ele apenas sonho a cada engarrafamento paulistano - mas o professor de física não falava de engarrafamentos, apenas riscava números na lousa.

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Eu penso em educação e tento me obrigar a pensar nesse currículo todo que duramente atravessamos. Quero entrar na tal grade curricular - essa expressão tão deprimente, que já coloca o aluno dentro de uma cela antes mesmo de ele começar a pensar. Acho engraçado contrapor a "aventura do saber" a uma "grade curricular". Imagino poucas aventuras possíveis atrás das nossas terríveis e enferrujadas grades. Me forço à jaula, à grade, mas o pensamento livre corre, sempre escorre.

As palavras não são inócuas: têm poder. No universo escolar, estão a serviço de que? Outra que me fascina: disciplina. É realmente preciso haver muita disciplina para suportar, espinha ereta, pálpebras abertas, o professor tagarelando bhaskaras às sete horas da manhã. Grades curriculares, disciplinas, bedéis, monitores, notas, médias, sinal, recreio, controle de presença, recuperação. A primeira coisa que eu faria para reformar a escola seria reformar o vocabulário. A minha escola teria unicórnios. Seria uma Pasárgada, uma Hogwarts vocabular, porque sem imaginação o homem não consegue voar.

Eu aposentaria as velhas disciplinas e as trocaria por, quem sabe, fenômenos. Eventos. Descobertas. Melhor ainda: espantos. Hoje tem espanto de química. Espanto de biologia. Gostaria mesmo é de ver um Espanto de Cozinha, em que se aprendesse a um só tempo física, química, matemática, português e biologia.

Minha filha é fascinada por Hogwarts, como todas as crianças. Teve de procurar unicórnios longe da sala, porque a magia, toda a magia, cada grama de pó de pirlimpimpim, está fora da sua escola, nunca dentro dela.

Quando penso em minha própria educação, surgem flashes de fórmulas e macetes (bico de pato é gostoso frito: a frase nonsense ajudava a decorar reações químicas incompreensíveis), mas o que permanece não é isso. São minhas experiências de protagonismo. O bimestre em que adaptamos o livro Senhora para o teatro. Eu nem gostei do livro, mas que maneira formidável de conhecê-lo. Os alunos escolhiam os livros que encenariam, adaptavam a trama, dividiam os papéis, providenciavam até cenário e figurino. Lembro que conseguimos uma linda cama emprestada de uma loja de móveis, pois era fundamental, em nossa montagem, ambientar diálogos no quarto do casal. E aprender a convencer um moveleiro a emprestar um móvel para uma peça juvenil, como se aprende?

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E o beijo que dei na protagonista, quem ensina?

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Aquilo era aprendizado, e o aprendizado descortinava maravilhas. A inteligência, como uma princesa encantada, desperta com um beijo, e não na palmada. O beijo do espanto, o beijo da curiosidade que nos atiça. Ainda conheço e reconheço trechos do livro - um desses clássicos que empurramos meio que sem saber por que às goelas de nossas crianças. Ali aprendi. Apreendi.

De repente me ocorre por que educar é impossível. Educar, quando a educação se dá em grades e disciplinas, é, por um lado, uma violência contra a qual todos naturalmente resistimos. Por outro lado, a educação é impossível quando se dá exclusivamente por meio de palavras. O universo das palavras, qualquer criatura apaixonada bem sabe, é limitado. Difícil educar apenas com palavras, porque as palavras são sempre insuficientes - muito menores do que a vida. (Bem, a não ser que você tenha aulas com Shakespeare ou Drummond, que são também maiores que a vida.)

Hoje, ao sonhar a educação - a minha, a de minha filha, a de meus alunos, a de todos -, fico taciturno, mas nutro grandes esperanças. Considero a enorme realidade e suas possibilidades de aprendizagem - descobrimos muito sobre isso nas últimas décadas, embora pouco apliquemos. Não estamos realmente divididos, queremos uma educação melhor, e isso podemos alcançar com um esforço além da palavra, e com palavras mais adequadas às nossas intenções.

Por isso não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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