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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|E começa o desconfinamento (corônicas de Portugal #7)

Diários da Covid #7. Tateando o "novo normal"

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:

 

arte: loro verz

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»Começou o desconfinamento - ao menos aqui, em Portugal. É mais uma palavra que sacode o pó do vocabulário, logo ao lado de distanciamento social, lockdown, quarentena e descontaminação. Vamos juntos tateando o novo normal. O novo normal no Jardim do Morro, uma praça com bonita vista para o rio Douro, no Porto, parece bastante natural. Passei por lá nesta semana durante o pôr do sol e vi muitos casais, grupos de amigos e de famílias rindo e bebendo sob o céu azul. Fotografei a cena e mandei para os amigos macambúzios: vejam como é o mundo (com sorte) pós-covid. Ninguém percebeu muita diferença entre o velho e o novo normal.  O olhar mais atento, contudo, não demora a perceber as particularidades dessa nova normalidade. Os grupos no jardim eram diminutos, com duas, três ou quatro pessoas, e entre eles havia uma distância considerável de pelo menos três metros. Olhando com ainda mais atenção a gente percebia que sobre as toalhas espalhadas pelo gramado havia garrafinhas de álcool em gel, lenços e pequenos sacos plásticos com o novo acessório indispensável da estação, as máscaras. Sem máscara não é possível entrar no metrô, no ônibus, no supermercado. A coreografia também mudou. São raros os toques, os beijos. Cada um com sua garrafinha ou copo de cerveja em mãos, habilmente desinfectado com gaze e álcool. O encontro e a despedida acontecem sem contato direto. Talvez tudo isso pareça triste, em comparação à primavera passada, quando a praça tinha muito mais gente e muito mais beijo e muito mais agitação. Mas eu estou feliz. Encostados à grama, com os cotovelos no chão e o pescoço pálido exposto ao sol, os amigos sorriem em silêncio. Aproveitam a luz.  Logo surge um sujeito no canto da praça, sozinho, com um grande saco preto a tiracolo. Encosta a bagagem no chão, tira seu chapéu de abas largas e o deposita na grama cuidadosamente, com a boca virada para cima. Abre o saco, saca um violão.  Canta. Um tanto rouco, um tanto desafinado. Será que perdeu o hábito? Persiste. Não tardam os aplausos. A melodia parece, enfim, encaixar. O repertório, variado, é agradável. Aqui e ali alguém canta junto. Eu também.  Todo mundo desafina de vez em quando. Não desistiremos. Vamos juntos tateando o novo normal.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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