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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|E aí, já fez papel de trouxa em 2019?

Se você nunca foi trouxa, está fazendo algo errado

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Atualização:
 

arte: loro verz

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»É uma comédia romântica. A fórmula é conhecida: cara encontra garota, cara perde garota, cara reconquista garota. Em alguns roteiros, estendem mais um pouquinho, ou começam pelo desencontro para terminar no encontro, mas a filosofia é a mesma, mesmo que não envolva necessariamente garoto-garota. O importante é a dinâmica das trapalhadas ingênuas que fazem tudo ganhar e tudo perder sucessivas vezes. A plateia inteira se reconhece, ainda que em segredo. Todo mundo às vezes se sente meio trouxa, assim como o casal de protagonistas é meio trouxa no meio da comédia romântica. Se você nunca foi trouxa, está fazendo algo errado. É isso. Não há como viver sem adentrar esse território. É na trouxidão que nos reconhecemos irmãos - mamíferos com polegar opositor, telencéfalo altamente desenvolvido e um inesgotável potencial para fazer coisas estúpidas ou ser alvo da estupidez alheia - e seguir em frente. Você até pode ser muito esperto dentro do seu próprio quarto, pode passar o dia jogando videogames e se blindar contra as pernadas da vida e seus mistérios. Isso não o imuniza totalmente de ser passado para trás, é claro, mas reduz drasticamente as chances. Ao menos nos jogos as regras estão claras, e as maldades dos vilões são, se não conhecidas, esperadas. Viver é sofrer, como dizem os budistas, e o maior grilhão do homem é acreditar que nunca esteve agrilhoado, como completou Schopenhauer, ele mesmo fã da filosofia oriental. Quem não está sofrendo não está vivendo. Soa terrivelmente pessimista, mas, ao contrário, eu sempre achei o velho filósofo libertador, como um Buda mal humorado a indicar um pedregoso, mas palpável, Nirvana. Mas esse pessimismo fundamental, que diz que o estado normal é de merda, e que os instantes de felicidade são só um breve descanso na loucura (como diria Riobaldo, nosso filósofo do sertão), tem suas vantagens. No mínimo, deixa a gente relaxar gostosamente mesmo quando o ônibus não para no ponto, quando a chuva encharca a roupa ou quando o parceiro desaparece sem aviso. Ufa, está tudo bem. É só mais um dia. Quem está decidido a não sofrer está decidido a não viver. Então o filme é trágico, dramalhão pesado. Prefiro a comédia romântica: alguém se dá bem, depois se dá mal, e enfim termina bem. A vida é isso mesmo, esse círculo misterioso em que caminhamos sem nunca saber muito bem a qual altura estamos. Agora estou me dando bem ou estou me dando mal? Depende. O importante é: abraço o papel de trouxa. Abrace o papel de trouxa - só não se apegue a ele também. A história é manjada e a fantasia nos cai bem. Não há como fugir do papel na comédia humana. Chegamos a 2019. O filme já vai começar.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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