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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Do que eu falo quando falo de Cuba

Mais fácil é se apaixonar por Paris ou Veneza; Havana seduz de outras maneiras

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 

arte: loro verz

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  »Há alguma coisa em Havana que fascina. Antes de prosseguir, um aviso desnecessário: não me interessa falar com quem usa Cuba para defender ou atacar uma convicção política qualquer. Não fui a Cuba em busca de argumentos para atacar destros ou canhotos. Fui a Cuba como um Fernando Pessoa perdido entre centenas de heterônimos: como a gente vai a um país estranho. É disso que falo quando falo de Cuba: primeiro, um choque de estranhamento e repulsa; depois, aos poucos, um encantamento. Meu amigo e eu nos hospedamos em um lugar simples e, colocadas as malas no chão, decidimos dar uma volta a esmo pela cidade. Entramos por ruas e vielas fora do circuito turístico da capital, sob um inclemente sol de 36 graus. O trajeto foi desanimador: muito lixo, mau cheiro, construções à beira do desabamento. Nenhuma sombra à vista. Era seguir e seguir e seguir na esperança de chegar a algum lugar menos agreste. Chegamos. Não por força das pernas, mas do tempo. Com o passar das horas, apenas horas, o coração da cidade foi se abrindo a nós, os erradios. E, quando o sol se pôs no Atlântico, coisa de oito horas da noite, avistamos pela primeira vez o coração de Havana. Um coração que bailava. Seguiram-se surpresas, uma a uma. Dentro dos casarões decadentes, bares. Nos bares, bandas. A música: espetacular. Depois vagar pelas ruas, n'alta madrugada, e se sentir seguro. Apesar do aspecto decadente das casas, das ruas, dos carros, era mais tranquilo andar pela periferia de Havana do que pela maioria dos centros urbanos brasileiros. Quando eu perguntava aos cubanos, aliás, do que mais gostavam no país, a resposta era sempre a mesma: da segurança. (As críticas, contudo, eram as mais variadas.) Depois da primeira noite na cidade, com muitos mojitos a preços módicos, os dias que se seguiram foram de progressivo encantamento. Há algo fascinante numa sociedade ainda não cooptada por smartphones - ainda que forçosamente. Meu lado nostálgico foi seduzido. Fiquei positivamente impressionado com a quantidade de gente olhando olhos e paisagens, almoçando e jantando sem telas diante dos olhos, parecendo viver a vida em primeira mão; a própria, no presente. Mas Cuba é complexa. Para cada elogio havia uma crítica, e, para cada crítica, uma ressalva relevante. Talvez tenha sido nisso que a cidade me conquistou definitivamente. Além da música, das bebidas, da cordialidade, sua evidente complexidade. Me encantam as coisas assumidamente complexas, as misturas, as reviravoltas de enredo. É fácil olhar o belo e sentir-se bem; sentar numa ponte sobre o Sena, em Paris, para admirar uma ave rara - e se apaixonar. Navegar as galerias de Veneza - e se apaixonar. Subir as colinas de Lisboa em busca das melhores vistas e dos melhores cafés - e se apaixonar. Mais estranha é Havana: olhar o feio, o decadente, o desafiador - e se apaixonar.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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