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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Deixa ela entrar

Danço, bebo, cozinho, assisto e leio. Durmo. Gozo. Sonho. Entre uma coisa e outra, deixo a porta aberta.

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»A porta estava trancada. A porta estava sempre trancada - sem nem pensar já há muito tempo eu dava duas voltas à chave, assegurando que ninguém pudesse arrombá-la. A casa era à prova de surpresas, assim. Havia o porteiro, o interfone, o elevador, o corredor e enfim a porta cerrada. Havia tempo para agir e tempo para reagir: entre uma visita inesperada e os meus olhos, e as minhas mãos, havia um bosque de saídas, atalhos e desculpas perfeitamente toleráveis. O mundo era seguro, daquela sala - bastava dar duas voltas à chave. Quando ela se insinuava, então, eu não me surpreendia. Embora ela nunca me contasse de onde vinha ou para onde iria, eu era majestade nos domínios do condomínio. Ela vinha pelas próprias pernas, pelo próprio desejo, mas em última instância era eu quem girava, ou não, a chave. Era o que eu achava: eu a deixava entrar. Ou seria o contrário?  Começou num acidente e acidentalmente decidimos prosseguir. Em um dia desavisado, dei uma volta só à chave, sem perceber. Não pensei muito sobre isso. Talvez estivesse cansado, talvez estivesse apenas economizando um pouco de energia. Nada mudou: porteiro, elevador, corredor, porta. Ouvia a campainha e tinha mais um minuto para colocar as coisas no lugar, para projetar a imagem que me convinha. Noutro dia, ainda mais distraído, deixei a porta destrancada. Ela não sabia - ou talvez soubesse e não tivesse coragem de seguir, de entrar, de ficar. Quando ouvi o elevador, já a esperava sorrindo. O olho esquerdo cintilando no meio da fresta iluminada. Veio e saiu. Depois sumiu, atolada em temores e compromissos. A porta continuou destrancada.  Fui tocando a vida - triste, doce vida. Música, café, comida, vinho, filmes e livros. Amigos; amores; despedidas. Danço, bebo, cozinho, assisto e leio. Durmo. Gozo. Sonho. Entre uma coisa e outra, deixo a porta aberta. À noite, sonho. Sorrateira, quem sabe ela volte a penetrar a minha casa. Reaparecerá, em definitivo e sem aviso, corajosa e madura, como quem desliza por entre portões, porteiros, escadas e corredores sem hesitar. Irá segurar o meu rosto entre as mãos macias e despejar um sorriso imenso em mim. Livre. Vai me acordar e murmurar, apenas, olá: - Você deixou a porta aberta.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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