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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Deixa ela chorar

O pediatra foi enfático: deixa chorar. Paulo ficou apreensivo. Quer dizer, na verdade ele entendera a explicação racional toda, o fato de que o bebê, malandramente, faria a associação em dois tempos entre choro e colo. Era preciso ser firme naquelas horas.

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» O pediatra foi enfático: deixa ela chorar. Paulo ficou apreensivo. Quer dizer, na verdade ele entendera a explicação racional toda, o fato de que o bebê, malandramente, faria a associação em dois tempos (se é que já não fizera): chorar de madrugada é igual a colo de pai e mãe. Assim, por mais que a filhota estivesse totalmente confortável, saudável, bem alimentada e feliz, continuaria a transformar as horas mortas numa espécie de Madrugada dos Mortos Vivos.

Paulo faria o papel do zumbi, no caso, porque o bebê estava vivo muito vivo e choraria só porque o colo do pai ou da mãe - ou melhor, do pai, no caso do Paulo, divorciado - é obviamente o melhor lugar do mundo.

Concordou com o pediatra, até porque, na cabeça dele, discordar de pediatra era como discordar de padre, psicanalista, amigo e pai, tudo ao mesmo tempo. O médico, o ancestral doutor Arsênio, era uma espécie de xamã da tribo dos novos pais. Sandro, o galã, Julião, o piadista, e até o Fábio, o único pai da turma ainda casado- embora vivesse em altas crises, cara, altas crises -, todos frequentavam as sessões mensais no velho Arsênio, que era o contrário do que se poderia esperar de um pediatra. Seu consultório não era colorido e cheio de bichinhos de pelúcia ou traquitanas assépticas da Fisher Price, não havia aquário de balas e pirulitos, sua secretária não era jovem e simpática, sua mesa não ostentava um único porta-retrato de família feliz. Era tudo muito simples e objetivo.

Doutor Arsênio era um velho duro, duro como o nome e sotaque (inidentificável, insondável) de algum canto do leste europeu. Mas era um tipo bom. Lá pela terceira consulta se descobria que era um tipo realmente bom, que em algum lugar escondia um coração altruísta. Exercia, contudo, a sua bondade pelo martelo. Falava apenas o absolutamente necessário. Não sorria. Era rigidamente militar nas broncas - que, para a turma de Paulo, eram como breves sermões bíblicos. Esquece isso de estudar de tarde, criança tem de estudar de manhã. Para de dar porcaria. Põe na cama às oito. Acorda às seis. Nunca vi criança morrer de fome tendo comida em casa. Computador, celular, não é brinquedo. Corta o doce. Corta a TV. 

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E então, enfim, a mais temida de todas as ordens: deixa chorar. Choro não mata.

Não mata. Embora racionalmente a explicação do dr. Arsênio fizesse todo o sentido, o fato é que Paulo nunca fez nada tão difícil em toda a sua vida. Era um professor medianamente bem sucedido e já passara por perrengues enormes na vida, como a gravidez-surpresa da ex-namorada, a demissão de um bom emprego (recessão, retração do PIB, sinto muito, cortes massivos em toda a faculdade), sair da casa dos pais sem barba e sem grana e, depois, sair da casa da ex-mulher com barba e sem grana. Já escrevera três livros sem nenhuma repercussão. Mantinha um blog sobre paternidade bastante atualizado e de conteúdo interessante, mas nenhum acesso. Perdera uma grana boa emprestando-a a um casal de amigos que nunca mais deram notícias. Certa vez, orgulhava-se disso, ajudara a família da faxineira da casa de sua mãe a erguer uma casa em mutirão. Vivera, sofrera, conquistara, perdera. Seguia.

Mas nada disso se comparava a: deixar chorar.

Depois da dura, decidiu que seria um pai mais rigoroso, ou melhor, mais equilibrado. 

O plano foi parcialmente bem sucedido. Conseguiu deixar chorar. Por cinco minutos. Depois, colo. Mas era assim mesmo, segundo o relato de outros pais. Na primeira noite a gente deixa uns segundos, depois minutos, depois até amanhecer. E o choro para logo que a criança percebe que a chantagem - mas que palavra pesada, chantagem - não funciona mais.

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Eventualmente, chegou lá. Ninguém sabe dizer, contudo, se chegou lá porque adquiriu a fibra necessária ou se porque a filha cresceu e abandonou o hábito de acordar de madrugada assim como abandonou chupeta, mamadeira e fraldas. Mas chegou lá, no tempo possível, e nunca mais voltou ao pediatra, ocupado com as novas rotinas da vida.

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Eventualmente formou nova família, até. Agora era a filha, a nova mulher, outros filhos a caminho. Sentia-se muito mais preparado, embora internamente mascasse a dúvida: seria capaz de novamente deixar chorar? De realmente fazê-lo?

Quando a mulher engravidou, procurou o dr. Arsênio para dividir a notícia e agendar uma consulta para apresentá-los. Ninguém atendia mais o velho número do consultório e não encontrava nenhuma referência na internet ou no plano de saúde. Foi o Julião que comentou, um dia no bar, casualmente: Que tragédia, a do doutor Arsênio. Vocês souberam?

Havia morrido. Aparentemente, ataque cardíaco, num dia como outro qualquer, em pleno consultório. Uns diziam que foi durante uma consulta, discutindo com um pai que dera um smartphone novinho à filha de seis anos. Que babaca, alguém comentou. Este mundo está perdido.

E de repente um soluço, um suspiro baixinho. Fábio emendou que, em se tratando de notícia triste, aí vai: vou me separar. Logo desatou num choro tão incontido que chamou a atenção no bar. Os garçons olhavam cúmplices, com as bandejas sob o braço e os olhos no chão. A situação era estranha e constrangedora, mas ninguém se atreveu a interromper o Fábio, que engasgava com as próprias lágrimas.

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Antes que Julião fizesse menção a piada sem jeito, Paulo cobriu o ombro do amigo com as mãos. Era preciso deixar chorar. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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