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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Da importância das coisas inúteis

Volta e meia, os alunos se queixam da inutilidade dos conteúdos ministrados em sala. Que propósito tem saber o número atômico do Bário?

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» A memória é péssima; a minha. Poderia culpar a idade, essa mula ensimesmada que avança sem se importar com as intempéries no meu rosto, corpo, nos meus olhos - com a lama nos meus sapatos. Poderia dizer, por certo: estou ficando velho, não lembro mais de tantos filmes, datas, livros, nomes, rostos, cheiros, pessoas.

Mas seria mentira, dupla mentira. Primeiro, o envelhecer não me tornou propriamente velho, ainda aos 35. Segundo, e mais honesto: a memória sempre me traiu - até no jogo de virar cartas e buscar pares idênticos saia-me mal, desde pequeno.

Mas seria outra mentira dizer que a memória é inteiramente péssima; a minha. Para um bocado de coisas ela é demasiado precisa. O problema é que as coisas que minha memória agarra, voraz, são inúteis.

Minha memória é uma coleção de acontecimentos irrelevantes, museu de trivialidades e bizarrices sem uso. Panteão de fracassos e lirismo solitário, coleção de protoideias e pseudobrilhantismos, aquário de revoluções abortadas.

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Não lembro o seu nome. Esqueci outro aniversário. Acho que ele me devia uma grana. Mas não esqueço o dia em que duas folhas secas caíram gentilmente sobre o para-brisa, a sensação de afundar os pés na areia fofa da Praia da Saudade, a cor de um vestido amarelo.

As coisas inúteis, muito mais do que inúteis: as coisas imprestáveis mesmo. O refrão de uma música ruim dos idos de 1980. O preço de um pacote de 7belo. As 36 pintas de uma tartaruga de estimação da infância.

Volta e meia, os alunos se queixam da inutilidade dos conteúdos ministrados em sala. Que propósito tem saber o nome da capital do Burundi, o número atômico do Bário, o título-nome-sobrenome dos senhores das guerras de alhures? Qual razão, meu Deus, pergunta a razão inquieta.

Eu, com memória péssima, já li dezenas de justificativas pedagógicas para tanto. Mas delas já não lembro.

Lembro das folhas secas pousando no para-brisa. Era terça-feira, meio dia, ia a caminho do colégio buscar minha filha. O trânsito, a pressa, a vida parou por duas folhas pequeninas.

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Inúteis.

No meio de uma discussão, no meio de um funeral, lembro delas. Como rodopiaram quatro ou cinco vezes até se ajeitarem diante do capô, silenciosamente. E como partiram depois, ao engate da marcha, para nunca mais.

Aquele dia.

As coisas inúteis.

Às vezes só as coisas inúteis é que nos salvam. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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