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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Todas as minhas culpas

Culpamo-nos por tudo, o tempo inteiro. No fracasso e também no sucesso. Na adversidade e no triunfo a culpa está sempre lá, projetando sua longa sombra sobre nós. Mas se o homem é o único animal a sentir verdadeiro pesar, irremediável culpa, o que nos destrói por dentro é também um traço de nossa identidade comum: demasiadamente humanos, irremediavelmente culpados.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
arte: loro verz Foto: Estadão

 A culpa é toda minha.

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O chá esfria lentamente. [Ela disse gostar de chá, e preparei um com toda a cerimônia.] A xícara repousa sobre a mesa. Infusão de cores e aromas num silêncio sem borbulhas, um silêncio sem misturas, um silêncio de folhas molhadas, névoa clara e gotículas condensadas.

Eis a única conclusão possível. Ainda que o tempo de minha culpa seja o mesmo do chá quente, e que se sucedam as culpas em espirais sem fim, as manchas úmidas sobre a mesa persistem.

Eu, poderia, afinal, ter feito melhor. Poderia ter me aplicado mais. Não quis dizer aquilo. Passe o açúcar. Não quis fazer isso. Adoçante, melhor. Eu poderia ter feito mais e melhor. Eu me culpo, puno, penalizo. Eu me mato. Torradas? Geléia?

Tudo faz com que eu me sinta culpado. Fracassar e, às vezes, vencer. Ter sorte no infortúnio. Ou azar. Perder o timing. Produzir menos do que poderia; mentir, desejar, querer mais do que deveria; abandonar planos, insistir em erros. A carne, o espírito. Passar pouco tempo com quem mais se ama, tempo demais desperdiçado. Ficar. Partir. Estamos sempre em outro lugar.

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Mesmo não sentir culpa é motivo bastante para nos culparmos.

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Afundo na poltrona e me culpo por estar imóvel enquanto o mundo gira. Os livros não se escrevem sozinhos, os filhos não se criam, a casa não se limpa, o dinheiro não brota. Eu deveria trabalhar mais, limpar melhor a casa, ler mais, escrever melhor, exercitar corpo e mente, estar mais presente na vida de quem importa, sabendo que nada é para sempre.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. A culpa sobrevive nos meus pensamentos, dizendo-se constantemente, fazendo-se presente. É preciso me mover. Mais depressa.

Mas não podemos. O ser humano é o único animal a sentir culpa, verdadeiramente. Remorso, pesar. A culpa nos dilacera e reúne. Sob o mesmo sol, os mesmos pecados. Humanos, demasiadamente humanos.

As culpas todas, tanta gastura e flagelação inútil. Mares de sal, lágrimas de Portugal. Fardo insustentável sobre todos nós, que também nos identifica.

A culpa é toda minha, como sua, e eu sou como você.

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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