arte: loro verz
»Foi no meio dos afazeres cotidianos que me dei conta do sol. O sol, aquela magnífica e flamejante esfera cheia de vida que aquecia a casa inteira desde cedo, fizera-me, sem perceber, arrancar as meias e o moletom de dormir. É trivial, eu sei, mas fazia meses que eu não passava um dia inteiro assim, apenas de calça e camiseta. A temperatura, enfim, voltara a subir na cidade. Finalmente me dei conta de que o inverno acabou. Aliás, faz exatamente uma semana que a primavera teve início. Os dias estão significativamente mais longos (no auge do inverno, o sol se punha antes das cinco da tarde, aqui no Porto) e agora a temperatura começa a ficar mais agradável. Para celebrar, resolvi colocar a roupa de sair e dar uma volta - em tempos de quarentena, dar uma volta significa, basicamente, ir ao mercado e me manter a 2 metros de distância de qualquer ser vivo. Na saída de casa, a TV me chama a atenção para, entre um anúncio e outro de doenças e mortes, informar que no domingo começa o horário de verão aqui em Portugal. Eu nem tinha me dado conta disso. Não tinha me dado conta de que estamos na primavera, muito menos da proximidade do horário de verão. Enquanto calçava os sapatos e me certificava de que o kit rua estava no bolso (álcool gel, sacola de mercado, cartão do banco e lenços para tocar nas maçanetas do prédio) pensei em quantas coisas perdi sem me dar conta, desde o início da pandemia. São tempos sombrios. Um homem que não repara no início da primavera, depois de penar por meses um inverno sorumbático, gélido e chuvoso, deixa de reparar em quantas, em quais, outras coisas?«