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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Cibercrise dos 30 anos

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Atualização:
 

arte: loro verz

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A minha filha nunca me perguntou o que é a internet. Parece bobo, eu sei, mas hoje me dei conta do significado profundo disso.

Eu e meus contemporâneos jamais perguntamos aos nossos pais o que era, efetivamente, um carro. O que era uma geladeira, um fogão, uma televisão. Aqueles objetos, tivéssemos eles em casa ou não, de alguma forma eram parte do nosso dia a dia.

Não perguntávamos o que é o céu, apenas apontávamos a imensidão sobre as nossas cabeças. Queríamos saber por que era azul, do que era feito, onde ele terminava. Mas não, jamais, o que era, efetivamente, um céu. A resposta desde sempre pairava imensa e silenciosa sobre nós.

A internet paira sobre a vida da minha filha como o céu pairou sobre a minha infância. Nos idos de 1990 jogávamos bola nas ruas monótonas de Curitiba. O sol ardia sobre nós, convidando à fruição da tarde. Solenemente regia o ritmo de nossas vidas; não só o despertar e o adormecer mas também o tempo do inverno e o tempo do verão - que, em Curitiba, são estações simultâneas. Ditava o tempo da brincadeira de rua e o da brincadeira de casa. De jogar futebol de meia ou de se esgueirar pelos terrenos baldios em busca de tesouros.

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Hoje aos dez anos de idade, Alice já veio ao mundo em banda larga. Consulta o status do céu pela internet. Com os dedos pequenos e ágeis navega por tablets, smartphones, desktops, laptops e qualquer tipo de traquitana tecnológica. A rede paira silenciosa e onipresente como o céu sobre ela. Usa-a para trabalhos escolares, para encontrar desenhos animados, para descobrir letras de canções favoritas e para se comunicar com coleguinhas. Distribui curtidas no Facebook.

Enquanto uns entram, outros saem. Nesta semana um conhecido anunciou que estava abandonando a rede social. Dizia-se cansado do chorume, das opiniões apressadas e tolas, da virulência e da violência associadas ao pseudoanonimato da rede. Dias depois, outro amigo largou a rede. Quer evitar discussões estéreis no seu relacionamento real, e nada melhor do que o Facebook para alimentar disputas inúteis e infindas. Compreendi imediatamente a ambos. No passado, fiz o mesmo.

Ao contrário do céu, a internet às vezes desanima. São toneladas de terabytes de comentários estúpidos, raivosos, fóbicos, paranoicos. São precisos nervos de aço para navegar sem perder a fé no que há de melhor na humanidade - atributos mais fáceis de encontrar em livros do que em telas.

A nova crise existencial dos 30 anos diz respeito a largar ou não largar o Facebook. Outros, mais angustiados, sonham em largar tudo, toda a internet: puxar, simplesmente, os plugues da tomada.

Não faltam motivos para sair, eu sei - e volta e meia o faço. Nos últimos dias foi o barulho em torno de um aplicativo bobo para ranquear homens. (Já opinei sobre o Tinder aqui, e tive preguiça de abordar o Lulu agora. E de falar daquele pseudofeminismo que nivela qualquer discussão pela depressão mais baixa.)

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Aos meus amigos, de quem sinto falta, só posso dizer: voltem. A internet, como o céu, tem seus dias nublados. Tem sua escuridão; chuvas e trovões. Mas reserva crianças prodígio, artigos científicos, filmes clássicos, cachorros, gatos, oceanos, lindos experimentos. Um dedo de prosa com quem a gente gosta. Dias de bonança.

 

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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