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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Não se pode amar e usar o celular ao mesmo tempo

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Eu soube que tudo estava acabado quando ela sacou o celular. Era o nosso quarto encontro, e até então nenhum trinado, toque ou vibração poderia nos tirar da doce circunavegação das primeiras vezes.

Mas então ela atendeu o telefone. [Pior, muito pior: na verdade o celular nem tocara nem nada.] Foi um desses gestos de curiosidade inocente, misto de ansiedade, tédio e um distanciamento transoceânico. Colocou a bolsa sobre o colo enquanto eu discorria sobre cães e gatos; abriu-a lentamente, num deleite íntimo que até me fez imaginar outros desfechos; sorriu com o canto dos lábios. Sacou o celular.

Era isso. Era o tédio que se instalara. O celular é a linha divisória de tudo. É a campainha que desperta os amantes de seu torpor. Pode ser o início de tudo - umas conversas madrugada adentro, umas fotografias bobas às três horas da tarde, uns recadinhos meigos no What's App. Mas mais certamente é o fim. O SMS rijo e seco, sem margem para os mistérios de uma caligrafia tremida de antigamente: "a gente se vê por aí". ok.

Dos próximos passos eu já sabia, cruzada aquela linha. No encontro seguinte, colocaria o aparelho ostensivamente sobre a mesa e olharia a tela com o canto dos olhos - uns bonitos olhos amendoados, perfeitamente cravados em pele muito branca -, tentando ainda disfarçar seu trânsito entre dois mundos. O nosso, perfeitamente romântico, de vinhos finos e queijos adocicados, e aquele outro, intangível, em que bilhões de algarismos se revezariam trazendo notícias de Paris ou da mais próxima esquina.

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Depois disso já não haveria preocupação nem sequer de disfarçar o contrabando. O mundo dos bits fatalmente iria se sobrepor a todo o resto. A campainha que arranca os amantes de seu torpor soaria de minuto em minuto, nervosamente. Nem o modo silencioso, precária salvaguarda contra o fim anunciado, seria então necessário. Suas mãos repousariam cada vez menos sobre as minhas, sua voz se tornaria mais rarefeita, seus lábios de novo iriam se expandir em sorrisos e gargalhadas, mas agora eu já nem saberia a razão disso. As pupilas contraídas e baixas, o rosto iluminado por um azul pálido. Fora cooptada. Acabara.

Quem pode competir com 3.000 amigos no Facebook, 50 convivas de What's App, setenta tipos de janelas multicoloridas?

Estava tudo decidido. Saí resoluto no meio do quarto encontro. "O que foi?", ela perguntou, assustada, voltando-se para mim por um segundo. "O celular", respondi. "O que tem?", reagiu, confusa.

"Bem, depois te mando uma mensagem."

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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