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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Às vezes a gente ganha, às vezes a gente perde, perde, perde

Tudo se perde, um dia. Só cuide de não esquecer quem é você.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

 

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»A teoria é simples: às vezes a gente ganha, às vezes a gente perde. Às vezes, porém, a gente perde, perde e perde. A desgraça vem toda junta. Se for o caso, um conselho: não reescreva, com muita tinta dramática, toda a sua história.

Um carro, um emprego, gentes à volta. Tudo se perde, só cuide de não se perder: você.

Dia desses eu soube: João Amado perdeu o emprego - a crise, dizem, não está fácil. É um de 11 milhões. Onze milhões. Dito assim, na letra do número, é banal. Um João é igual a uns dez milhões, novecentos e noventa e nove mil e uns quebrados de joões. Uns quebrados de joões.

No microscópio do infraordinário, contudo, é um drama.

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Quebrado, João perdeu também a Previdência, toda confiada à Petrobrás, que parecia barbada. Fez água.

Então começou a se desesperar. Azar no jogo, sorte no amor? Que nada. Um João Amado quebrado e desempregado não confia mais no próprio taco. E a mulher, que não é boba nem nada, não quer saber de joão capado. É claro.

Às vezes a gente ganha - há pouco tempo João recebia bônus de bom funcionário, convites para altas reuniões, tapinhas nas costas -, mas às vezes a gente perde. E perde, e perde. Agora, não entra nem por cota. Reviram os olhos à sua passagem: dizem que tolo, dizem coitado.

Até aí, compadre, é coisa da vida. Emprego, cama, dinheiro, desamparos. Tudo some num instante enquanto esperamos as bodas que ninguém sabe quando virão. O importante é ter saúde, ouve, e isso ainda tem; saúde, rugas e cabelos esbranquiçados.

Tudo passaria, contudo, tudo iria relativamente conforme o prescrito (às vezes perde, mas às vezes ganha) não fosse, em seu caminho, um espelho. Não visse, no malfadado, um João muito cansado. Não encaixasse por fim suas agruras de joão desempregado em uma nova narrativa, muito mais sombria.

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Para encontrar sentido em tanta desgraça, fez-se personagem trágica.

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E a fábula se apegou à pele como um parasita. Quando pensava na sua história, a sua biografia, João se achava imprestável. Incorporara as más circunstâncias da vida à vida inteira que restava; se tornara de corpo e alma aquele coitado da história que contava.

[E mesmo que em poucos dias retomasse emprego, em poucos anos refizesse a aposentadoria e estivesse, enfim, até muito melhor, tremeria sempre ao cruzar um espelho, ao ouvir seu chamado. Ficava sempre uma sombra amarga.]

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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