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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|As pessoas são muito complexas

As pessoas são assim, complexas. Pensar demais, eu acho, deve ser a doença dos humanos, essa espécie equilibrista, que cambaleia sobre o poço dentro de si.

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Foto do author  Renato Essenfelder
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 Foto: Estadão

arte: loro verz

 

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» Eu sempre sei quando ele está triste. É algo no seu cheiro. As pessoas nem imaginam quantas coisas deixam de perceber por causa do cheiro delas; sutis mudanças de tons e ênfases. Eu me aproximo e toco sua perna com delicadeza, depois os braços. Suas mãos me encontram meio distraídas, como num gesto automático, sem consciência do efeito que produzem em mim.

É difícil afastá-lo dos maus pensamentos, quando ele está desse jeito.

As pessoas são assim, complexas. Imagino que dentro de cada ser humano haja um abismo muito profundo, e o que vejo é a borda do precipício. Por trás dos olhos dele eu não sei o que há: muita noite e muita névoa. Por trás dos meus ele sempre me enxerga: minha fome, minha sede, minha alegria que se manifesta por todos os poros da pele.

E a minha tristeza também, quando me deixa só.

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Imagino que as pessoas são muito fundas, e estamos sempre tocando, no máximo, as suas margens. Como daquela vez em que me levou a um imenso parque - faz tempo que não me leva a lugar algum: agora mal saímos de casa - e eu tive medo de me aproximar demais da água e me afogar. As pessoas são como as plantas à beira do lago. Nunca sabemos o que borbulha abaixo delas: vórtice d´água sorrateira ou terra morna e acolhedora.

Quando mergulha tão profundamente nesse poço sem fim de si mesmo eu não consigo nem sequer tirá-lo do sofá. Toco o seu corpo e nada, faço barulho e nada. Um dia quebrei um copo de propósito, sabia que seria barulhento e viria um esporro. Ele só notou horas depois. Esporro não veio.

Ouvi quando falou ao telefone com o pai, como foi ríspido, como é ríspido comigo também, em dias assim, e como depois chorou até soluçar. Não gosto de ser indiscreta, mas não posso deixar de ouvir, pois tenho ouvidos. Também não posso deixar de cheirar, de lamber, de andar, de rolar, de coçar, de ganir. Pois tudo isso a natureza me deu. Todos os sentidos.

A natureza, que ele às vezes chama de Deus, baixinho, pedindo-lhe coisas, também já deu a ele todos os sentidos - embora o homem, bobo, não saiba usá-los para muita coisa. Mas tem braços longos e fortes, pernas longas e fortes, nariz e olhos, língua e orelhas - e, ainda , um polegar opositor. Farta comida pelos cantos da casa. Por que pede mais?

Eu às vezes penso em tudo o que poderia fazer com a sua perfeição. Mas não penso muito, pois me acho perfeita também. Quem pensa demais é ele, e eu não entendo por quê. Pensar demais, eu acho, deve ser a doença dos humanos, essa espécie equilibrista, que cambaleia sobre o poço dentro de si.

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Tem dias em que me olha com ternura, tem dias em que me olha com cobiça, como se quisesse trocar de lugar. Eu entendo isso e o convido a rolar na grama, a deitar no chão frio, a comer sem talheres, a uivar para a lua. Sinto que ele gostaria imenso de tudo isso, e que cada instante de felicidade bruta seria um tijolo para aplainar a sua imensa tristeza sem fundo.

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Mas ele tem vergonha. 

Ele tem vergonha de muitas coisas, e eu não tenho vergonha de nada. Vergonha de ficar nu e vergonha do próprio riso, que cobre com as mãos, e vergonha dos barulhos que o corpo faz. E vergonha da vontade súbita que tem de fazer amor ou de devorar os restos do jantar, quando perambula na madrugada, sem lua a quem uivar.

Ele tem vergonha de tudo, até de mim, quando diante das visitas eu me comporto como o animal que sou enquanto ele, triste e sorridente, apertado em fraque e muito perfumado, com o estômago burburinhando, serve nacos de costela aos convidados. Queria estar em qualquer outro lugar, mas está ali, desconsolado.

No alto, a lua geme em sua toca. Também sente falta dele.

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E debocha. O homem é um animal complicado. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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