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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Ando pensando em arrumar um vício

O vício pode fazer mal à saúde e ao bolso. Mas viver sem vícios é muito mais perigoso.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Ando pensando em arrumar um vício. É sério. Eu sei o que dizem todos os médicos, todos os especialistas em dizer como os outros devem viver. Eu sei. Mas é que cheguei a uma conclusão avassaladora nas últimas semanas: viver sem vícios é muito perigoso.

É muito, muito perigoso acordar de manhã e pôr os pés no chão. Tomar o celular nas mãos. Ler as últimas notícias de política, de economia. A derrota de seu time. A resenha daquela peça fantástica que você não vai ver - o que o lembra, aliás, de todos os filmes maravilhosos que já saíram de cartaz. Espiar as redes sociais e esfregar os olhos duas, três vezes. Carina está em Dubai, Ângela foi para Paris, André escalou o Everest e você ainda nem calçou meias.

Uma pessoa sem vícios abre a janela pela manhã e deita os olhos no horizonte preguiçoso. Tentar conter um longo suspiro. Impossível. Melhor se fixar nas tarefas do dia: banho, trânsito, escritório, quem sabe uma passada na academia. Trânsito, banho, despedida.

É muito perigoso viver sem vícios, viver entre um e outro suspiro prolongado, com a cabeça perfeitamente clara, desanuviada, com quilômetros e quilômetros de horizonte visível. Cabeça vazia, oficina do diabo, dizia a minha avó. Três mil diabos por dia, na cachola de quem não tem vícios.

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É um perigo.

Preciso de um vício, pois. Nada muito pesado: penso em cigarros. Um ou dois por dia, no máximo. Três, se flertar com a apatia. Um veneno antimonotonia. Então beber uma dose ou outra - no máximo três.

Há uma arte menosprezada nos homens que sabem domar um vício. Nas mulheres que tiram um cigarro da bolsa, ansiosas, trêmulas, e então, com o bastonete entre os dedos, a chama do isqueiro em direção ao rosto, relaxam. Ou o vício de um salto no escuro, o vício de um mergulho, o vício de um movimento. Mas por favor nada televisivo, nada eletrônico-interativo, nada audiovisual. Um vício simples, offline, frugal. Três doses de chocolate ao dia já serviria.

Sim, sei dos prejuízos. Mas o homem com vícios - nada muito pesado, nada muito comprometedor - é mais saudável. É mais feliz. Enquanto eu, no fim do dia, deslizo o olhar pelos carros, pelas pessoas, pelos postes, árvores, nuvens, prédios (que perigo! que perigo!), ele, o homem com um vício, procura o último cigarro perdido na carteira.

E acende.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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