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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Anatomia da fuga

Ela foi para o porto. Eu abri vela na tempestade.

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arte: loro verz

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  »Poderíamos ser vela, poderíamos ser porto. Vento; pedra. Mas não ambos ao mesmo tempo. O mar transborda de peixes. Arrumamos as malas com pressa e desleixo - deixamos, sempre, para a última hora. Nenhum de nós gosta muito de fazer malas. Mas gostamos de estar na estrada, e eu lhe pedi que mantivesse uma pequena sacola de emergência sempre à mão, para que fugíssemos sem planos. E assim, sem sensatez nem aviso, descemos até o litoral.  As coisas acontecem de repente. Repito mais devagar, como um mantra: as; coisas; acontecem; de; repente. Veja, é a única forma de acontecerem, é a única maneira de se realizarem plenamente. O acontecimento previsto, planejado, é a espuma que enche a fronha. O que está além e aquém da planilha fica simplesmente invisível - o que não cabe no saco é retalho, rebarba, lixo. O acontecimento planeado, planificado, preenche a expectativa que lhe pôs no mundo e depois desaparece sem deixar vestígios. Murcha como uma velha almofada. Então é esquecido. No litoral, com o cálice nas mãos, poderíamos ter aguardado a hora da chuva - a previsão do tempo falava em chuva, então bastava aguardar para encher a taça até a borda e apaziguar nossa sede sem fim. Seria, talvez, o mais sensato. (Na sua bolsa sempre havia: maquiagem, dinheiro amassado, documentos, lenços, óculos riscado, seda e caixas de remédio. Eu me alegrava ao encontrar no bolso o dinheiro esquecido.) Mas não. Eu não não nasci com jeito de carregar taça e aguardar o encontro previsto das massas de ar. Queria que a tempestade me pegasse de surpresa, queria, de verdade, que chovessem rãs e sapos sobre nossas neuras e planos, que um cálice caísse do céu em minhas mãos, rubro e licoroso, e das mãos aos lábios, e dos lábios à língua, e da língua ao coração quente, num absurdo despropósito completamente sem sentido - tão sem sentido quanto todo o resto, como o próprio acidente de existirmos, apesar de todas as probabilidades. Esperava algo sem sentido, ao sabor das marés. O mar estava tão gelado. Ou era apenas: contraste? Gostava mais de esperarmos o imprevisto, esperando nada. O imprevisto, o acontecimento nem sequer sonhado, infinito e ilimitado. Algo que não pudesse nem mesmo ser pedido, nem mesmo ser desejado, porque não coubesse nas planilhas de desejos. Algo imenso como a vida. Agora a imensidão me cerca. É tão bonita. O mar transborda de peixes. Em meio à abundância de tudo, o veleiro nunca está vazio. Nem eu. Ela desceu em algum porto de pedra, as mãos trêmulas ansiosas por terra. Imprevistos. Segui. Acordo cedo, faço um café, escrevo um poema desajeitado e abro as velas sobre a água crespa da primavera. A embarcação espreguiça sorridente e solar, pulsando sob os meus pés excitadamente- quantas aventuras já não imaginará? Os dias são longos e bons, mesmo com as nuvens carregadas. Há tanto a viver, mas tanto e tanto que ninguém saberá descrever em lugar algum da imaginação. Se tivéssemos atentado à previsão do tempo estaríamos ainda em casa: jamais qualquer coisa teria nos impelido a sair. Mas saímos. Ela foi para o porto. Eu abri vela na tempestade.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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