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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Garotas querem sexo, garotos querem amor

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Foto do author  Renato Essenfelder
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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Garotas são românticas; garotos são insensíveis. Garotas gostam de natureza e artes, gostam de flores, montanhas, mares e também de poemas, romances, pinturas, concertos. Param para cheirar as rosas, jasmins, lírios do caminho. Garotas comovem-se diante da beleza e diante da injustiça. São educadas, pacientes, delicadas, gentis, doces. Garotas só querem amar.

Garotas choram; garotos brigam.

Garotos gostam de brigar, gostam de sujeira, bebida e jogo. Garotos pisam no gramado, roncam no cinema, dormem na ópera, falam alto e não escutam nada. Gostam de brinquedos, videogames, música pesada, carros, dinossauros e sexo. São escatológicos, grosseiros, bagunceiros, impacientes, chatos. Garotos só querem zoar.

Garotas querem amor, garotos querem sexo.

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Assim reza o senso comum, e a minha vida inteira, de intermináveis maneiras, disseram-me isso. Disseram-me pela televisão, pela música, pelas conversas de bar, pelas aulas na escola, colégio, faculdade; em família, em público. Disseram-me o tempo inteiro que as garotas eram delicadas peças de porcelana girando ao som de uma caixa de música. Quando ouço Clair de Lune eu penso em uma garota.

Mas essa garota, como todas as outras garotas que conheci nesta vida, não colhe as flores do caminho nem chora num filme do Carlitos. Aliás, quem chora num filme do Carlitos?

Há algumas semanas escrevi uma coluna intitulada "Conselhos para Uma Menina de Dez Anos". Era um texto para a minha filha, mas acabou tocando a mim e a muitos leitores. Um dos comentários ao texto dizia, contudo, que eu escrevera "conselhos para um filho homem, e não para uma filha menina". Reli ainda algumas vezes a crônica em busca dessa identidade de gênero, mas confesso que não encontrei nada. Repetiria as mesmas palavras a um filho homem, caso o tivesse.

Entendo, hoje, que o leitor queria que eu oferecesse os primeiros passos de uma educação para as virtudes do primeiro parágrafo: uma educação para a sensibilidade, voltada à arte e à poesia. E que eu aconselhasse minha filha a cheirar as rosas e a chorar com Carlitos. A ser educada, paciente, delicada, gentil, doce. A só querer amar.

O que me aproxima deste leitor talvez seja, então, uma educação moral - institucionalizada ou não - eivada de equívocos. Com dificuldade venho desconstruindo essa cartilha, meu caro amigo. A vida vem me provando, por A mais B, por encontro e desencontro, flerte e separação, tinder e algoritmo, foto e vídeo, por barulho e, enfim, por insuportáveis silêncios, que não é feita por delicadas mulheres de Vênus e bravos homens de Marte.

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Talvez seja o contrário. Toda a vida tenho encontrado mulheres que gostam de brigar, gostam de sujeira, bebida e jogo. Que roncam, dormem na ópera, falam alto e não escutam nada. Que bocejam nos museus e saraus em que choro. Que são frias, impacientes e só querem zoar. Que correm do amor como aqueles animais do Discovery Channel, em bandos imensos, fugindo de um lado para o outro.

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Sabem do que fogem, mas não para onde. Não sabem o que buscar.

Mulheres são de Marte, homens são de Vênus (ou seria o contrário?). Importa? Somos todos alienígenas. Talvez seja tudo misturado. Homens, mulheres, gente de todos os tipos. Guerreiros, barulhentos, covardes, confusos, superficiais, insensíveis e o avesso de tudo isso e tudo ao mesmo tempo num instante só. É isso a vida, e eu também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.

Eu luto, mas choro. E choro, mas luto. Choro com animações da Pixar, com folhas de outono e com um quadro do Diego Rivera. Com quase tudo: à flor da pele como na música do Zeca Baleiro. Tenho pesadelos com um poema do Rimbaud:

Inútil beleza

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A tudo rendida,

Por delicadeza

Perdi minha vida.

Mas o que fazer? Já tentei embrutecer, já tentei ser o que não sou. Fracassei sempre, embora às vezes e frequentemente o fracasso estivesse travestido de sucesso (mais popularidade, mais amigos, mais sexo, mais dinheiro também pode ser uma forma de fracasso?). Sim, se assim não sou. Em primeiro lugar, hoje, digo que é melhor conhecer a si próprio. Saber para onde correr - saber melhor do que aquele animal desorientado da savana.

Afinal, quem sabe o que haverá lá na frente, à margem do lago, quando você enfim chegar? Saiba para onde corre - e esteja lá ao chegar.

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Em segundo, manter-se atento e forte. Ler Drummond, ler Bandeira, Manoel de Barros e Adélia Prado (tantos, tantos outros ainda a ler). Poesia é insurgência, subversão: a melhor forma de resistência. 

(E tudo isso me ocorreu enquanto eu chorava vendo um filme do Carlitos.)

 

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Twitter do autor: http://twitter.com/essenfelder

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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