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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|A tecnologia avança, mas a cultura "Deu onda"

Tudo avança: a medicina, a física, a engenharia. Mas quando as tecnologias tomam o espaço de tudo, não percebemos como o espírito, e a nossa cultura, empobrecem.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Nem tudo é desgraça - embora às vezes o pareça. Para tirar o gosto amargo da retina, volto-me ao noticiário científico. Vejo os avanços da medicina. Segundo li recentemente, a hipótese de termos, nos próximos cinquenta anos, homens "amortais" (que não vão mais morrer por causas naturais, mas apenas por acidentes e coisas do tipo) é plausível. Imagine só um admirável mundo em que todas as doenças sejam curáveis. Um mundo em que o declínio do corpo seja contornável. Anima? Assusta?

Caminhamos a passos largos. Há poucas décadas, um diagnóstico de pneumonia ou tuberculose era atestado de morte. Hoje, resolve-se com antibióticos.

E não é só na medicina que a humanidade avança. Dubai estreia neste ano seu serviço de táxi aéreo, composto por inacreditáveis drones sem piloto, com autonomia de 50 km carregando passageiros de até 100 kg.

Os meios de transporte melhoram, os medicamentos, os alimentos, as mídias, o entretenimento... A humanidade avança.

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Em tudo, avança. Ou quase. Na véspera do Carnaval, no meio das enfadonhas discussões sobre marchinhas e horários de trânsito dos bloquinhos de rua, me bate nostálgica a vontade de ouvir Cartola. Ligo a vitrola. Preciso Me Encontrar, O Sol Nascerá, Alvorada. Depois, uma dose de Noel: Último Desejo, Três Apitos, Palpite Infeliz...

Estou ciente dos perigos do saudosismo. Dos perigos do "antigamente é que era bom", típico de gente que, sem perceber, envelhece. Assim, me tranquilizo. Se sinto falta de Noel não é porque a cultura não avança. É porque eu avanço: nos anos.

*

Um café para distrair. Passeando pelo shopping, um funk rasgado em pleno domingo à tarde. As famílias não se chocam, ninguém liga. Uns adolescentes cantarolam, entre risos. Não sei quem canta, mas presto atenção na letra: "Eu preciso te ter / Meu fechamento é você, mozão / Eu não preciso mais beber / E nem fumar maconha / Que a sua presença me deu onda / O seu sorriso me dá onda / Você sentando, mozão, me deu onda / Que vontade de ter, garota / Eu gosto de você, fazer o quê? / O pai te ama".

A humanidade avança, mas a cultura retrocede, penso. A cultura, digo, apenas no sentido das belas artes. Os entusiastas da pós-modernidade protestam: é preconceito contra os pobres! Mas Cartola era pobre. E negro. Noel, classe média, deformado pelo parto difícil, morto de tuberculose muito, muito jovem.

Então é preconceito contra a cultura popular! Popular? A lógica desse pai amoroso não é popular, mas puramente de mercado: planejado para agradar à massa, à massa agrada. Um sucesso estritamente comercial.

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É que o mercado também avança. E avança sobre tudo e sobre todos: a força da grana destrói as coisas belas. Sim, talvez eu seja saudosista, talvez eu esteja ficando mais velho mais rapidamente do que esperava. Sinto falta de algum lirismo. Até na música a vida ficou mais bruta. Tudo é bruto.

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As tecnologias, todas elas, avançam e tomam o espaço de todas as coisas em nossa vida: o espaço do afeto, do sexo, da poesia e da alma. Preocupados demais com recursos dos novos smartphones, mal percebemos o que acontece no espírito, que empobrece.

O disco está riscado. Salta. Toca insistentemente o mesmo refrão. "Deixe-me ir / Preciso andar / Vou por aí a procurar / Rir pra não chorar."

Rio para não chorar. A medicina, a física, a engenharia, a nutrição, a biologia, avançam. Tudo avança, enquanto o que é íntimo do Homem, a marca de sua humanidade, sua arte, retrocede, engolida e triturada por uma multidão de idiotas. O mundo é, mesmo, um moinho.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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