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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|A hora de fazer uma loucura

As loucuras de verdade são capazes de mudar o rumo de uma vida inteira – para bem ou para mal. São as apostas mais ambiciosas.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Decidiu tomar um banho. Sob a ducha sentia, desde menina, as ideias desanuviarem - como se a poeira das células mortas escorresse também dos pensamentos, ajudando-a a enxergar o mundo com mais clareza. Ou melhor, com mais criatividade. A clareza ela quase sempre tivera: era uma garota responsável e cuidadosa, e mesmo durante as aventuras mais loucas mantivera uma reserva mental de emergência, um suprimento de consciência fria que pudesse ser acionado a qualquer momento: no meio de uma festa, antes de uma transa, diante de um precipício. Nunca perdera completamente a cabeça. Ou perdera? Enquanto passava delicadamente o xampu sobre os cabelos molhados, tentou lembrar das vezes em que cometera alguma loucura, ao longo daquele pouco mais de duas décadas de vida (estava ficando velha, achava). As primeiras ideias que surgiram a fizeram questionar o significado de "loucura", para si. O que é "chutar o balde"? O que é "ousar" radicalmente? A primeira coisa de que se recordou era uma bobagem - mas tão excitante! Lembrou de quando tinha 12 anos de idade e, diante de um comentário qualquer durante um almoço de família, desses que reúnem avós, tios e primos, irritou-se e pela primeira vez na vida não guardou para si aquela irritação. Levantou-se firmemente e gritou alguma coisa como: parem de falar merda, vocês. Os mais novos (e os mais velhos) gargalharam, mas os adultos do meio, seus pais e tios, ficaram assustados. Nunca na vida haviam ouvido a pequena princesa falar daquele jeito. Diante da atitude da garota, nem prestaram atenção ao conteúdo político - ela estava farta de uma certa maneira de a família compartilhar a sua visão de mundo. Ficaram chocados é com o palavrão saído de boca tão delicada e com a ousadia da menina de se levantar assim, diante de todos, explodindo em indignação. Então alguém fez alguma piada sobre as TPMs terem começado e a fúria desandou em chiste e vergonha. Que pena. Que loucura. Outra vez, já na época em que entrava na faculdade, ela resolveu, sem mais nem menos, sem comunicar nem às melhores amigas, cortar radicalmente os cabelos. Entrou no salão de costume, sem hora marcada, e disse que esperaria. Estava muito decidida. Sentou-se à cadeira do seu cabeleireiro favorito e disse, sem rodeios: quero bem curto, manda ver. Dias depois, em uma festa da nova turma de sala, pela primeira vez ela bebeu muito além da conta e beijou outra garota. Achou excitante mais pela situação em si do que pela outra garota, por quem a atração que sentia, descobriu, não era de natureza sexual. Ou era? Fosse como fosse, não era do tipo de atração da qual a gente se lambuza quando ela se concretiza. Era mais do tipo que estoura como uma bolha de sabão. Talvez ela fosse uma bissexual platônica, como passou a se definir, fazendo graça. Ou talvez não fosse hora. De todo jeito, foi uma loucura, e a garota de formação exemplar e família conservadora passou a ser o tema das fofocas da turma (e das fantasias de colegas) por uns dias. Mas nem tudo eram atos de rebeldia juvenil. Algumas de suas loucuras eram embaraçosas. No banho, sozinha, enxaguando os cabelos pela segunda vez após passar diligentemente o xampu hidratante, foi assaltada também pelas loucuras incômodas. Era preciso confessar: uma vez traíra o namorado. Na verdade, traíra ele mais de uma vez. O rapaz até desconfiou, mas preferiu fingir que nada acontecia, confiante de que era só uma fase esquisita. De certo modo ele estava correto, porque, tão de repente quanto ela iniciara um caso paralelo, terminara-o, e agora estava totalmente dedicada a ele - mesmo já decidida a viver outra vida, sem o namorado. Também teve uma vez em que tomou ácido numa festa da faculdade e ficou realmente mal. Não se constrangia pelo ato em si, a experiência proibida, mas pelo desfecho. Deu muito trabalho às amigas, com horas e horas de pequenas alucinações e muito falatório sem sentido intercalado por sessões de choro compulsivo. Não era isso que esperava. Estragou a festa das amigas e se sentia mal por isso. Era mais ou menos essa, a lista. Não lembrava de nada muito transgressor ou impressionante, além dessas pequenas peripécias. Havia matado algumas aulas para beber cerveja ao lado da faculdade, havia transado em alguns locais menos convencionais (nada surpreendente), havia tido algumas experiências de uma noite com estranhos e largado um estágio bom e promissor porque se sentia simplesmente esmagada pela rotina entediante do escritório. Havia boicotado um aniversário da avó, faltado ao funeral do avô (arrependia-se disso, às vezes), colado em algumas provas e flertado com um professor. Nada demais. À saída do banho, ainda tentava descobrir o que a incomodava há semanas, mas não conseguia. Faltava alguma coisa; alguma peça; alguma luz. Pensando melhor, nada daquilo de que lembrara era loucura, não o tipo de loucura sobre a qual lera em livros, vira em filmes. Não do tipo de que às vezes ouvia falar, em relação a um colega distante. As loucuras de verdade são capazes de mudar o rumo de uma vida inteira - para bem ou para mal. São as apostas mais ambiciosas. O tudo ou nada. O apostar todas as fichas em um só cavalo. Isso ela nunca fizera. Isso ela não se achava capaz de fazer. Será que era chegada, a hora?«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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