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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|A cultura do fast food e o fast food da cultura

Os filmes hoje precisam ser fast. Os livros, fast. A cultura tem que ser facilmente deglutível e descartável.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

 

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»Quando comecei a dar aulas, em 2009, em uma grande universidade, tinha o hábito de perguntar aos alunos sobre suas leituras mais marcantes. Aparecia de tudo, ali: de Harry Potter a Bentinho (raramente sabiam dizer os títulos), de Cortiço a Pequeno Príncipe. O caldo já não era muito espesso, pois mal lembravam daquilo que lhes marcara, e, quando lembravam, referiam-se aos filmes derivados, e não aos livros.

Então, em pouco tempo, mudei de estratégia. Comecei a perguntar sobre os filmes mais marcantes, sobre a última vez em que haviam ido ao cinema, o que haviam visto e coisas assim. A aula se reanimou: as discussões sobre a cultura contemporânea eram incendiadas por blockbusters como O Senhor dos Aneis e filmes cult como As Virgens Suicidas.

Mas, com o passar dos anos, também esse caldo coalhou. Vi os livros virarem tweets. Vi os filmes virarem séries. Nada contra tweets (sou usuário, aliás), nada contra as séries (vejo-as sempre, várias).

Mas tudo contra essa dieta cultural empobrecida.

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A cultura do fast food veio, viu e venceu. A lógica da comida muito rápida, barata e muito fácil de deglutir, digerir e descartar, ultracolorida e feliz, contaminou todos os setores da vida contemporânea.

Os filmes hoje também têm que ser fast. Os livros, fast. Eu não gostei do filme tal, me disseram, porque o final não é claro. O livro tal é muito grande, dá pra resumir? A música tal é muito deprê. Ouço coisas assim, enquanto vejo sorrisos para selfies. Uma dieta sem muitas emoções, sem muitos empecilhos. Confundem as profundezas necessárias para certas discussões com mero blablablá. É como se o sentido da vida pudesse ser resumido a duas palavras; uma biografia, a um tweet, uma canção a um refrão.

***

É um paradoxo. Com a onipresença das redes sociais, nos conectamos mais, falamos mais, conhecemos mais pessoas e mais ou menos controlamos as narrativas sobre nós, nossa imagem pública. Por outro lado, a conexão múltipla e onipresente, que demanda tanto tempo e esforço, força a desconectar da vida lenta e dos prazeres lentos de um filme de mais de duas horas, de um livro de mais de duzentas páginas, de uma peça de teatro, incursão ao museu ou concerto de meio dia.

Justamente, contudo, nos museus, nas bibliotecas e nos palcos está condensada toda a experiência humana dos últimos dois ou três milênios. Quando me conecto com tudo o que falam agora, neste minuto, em tempo real, forçosamente me desconecto das vozes de todos os fantasmas ainda poderosos entre nós. Eu aprecio a companhia dos fantasmas.

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Quem abre um computador fecha um livro. Não é algo ruim por si só, assim como um lanche do Mc não é fatal no contexto de uma vida equilibrada - pelo contrário, é bem saboroso. Mas quando a dieta se torna só isso, a dieta do palhaço, a gente infla como uma balão de ar e depois explode,

explode e espalha apenas um grande vazio.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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