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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|2016 foi um teste de misericórdia

Nada é tão ruim que não possa piorar. Por isso lhe peço, 2017, que seja grandioso. Tenha misericórdia de nós.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»No fim do ano passado, o Papa Francisco anunciou o início do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que só foi encerrado em 20 de novembro deste ano. Para mim, ao menos na época, a solenidade toda passou no mais absoluto branco papal. Não entendia o significado daquilo. Hoje, a ficha caiu. Misericórdia!

Este ano de 2016 foi um teste de misericórdia. Pedi arrego. Em pelo menos cinco ocasiões pensei em escrever sobre o período, no melhor espírito "pior que está, não fica". Mas antes que pudesse digitar a primeira letra, ficava. Pior. Misericórdia.

O ano começou já com surto de zika e de microcefalia. A OMS declarou emergência internacional. Pouco depois, uma ciclovia desabou no Rio, matando três pessoas. Quando o ano começa com uma ciclovia assassina, ou melhor, políticos e empresários assassinos projetando ciclovias assassinas, você sabe que será precisa muita misericórdia.

2016 foi de provações terríveis. As crises se sucederam em todos os planos, começando pelo planeta Terra, passando por nações tão distintas quanto Japão e Haiti, chegando ao nosso Brasil, aos nossos Estados, cidades, bairros e famílias. Tivemos o mês de agosto mais quente da história - mais quente em pelo menos 100 anos. Coisa boa não pode ser. No Haiti, um furacão que mata perto de mil pessoas. Terremotos em várias partes. A natureza, indiferente a nós, sacudia sua longa pele para nos jogar, pequenos que somos, para lá e para cá. Para longe.

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Mas o lobo do homem é o homem, e o ano foi de muitos, incontáveis, atentados. Assassinatos em massa, com ou sem alegações, desculpas, argumentos. Ataque a uma boate gay nos Estados Unidos deixa mais de 50 mortos. Em Istambul, Cabul, Bagdá, Munique, Nice, centenas exaurem um último, triste suspiro. Pra quê? Não sei. Não consigo justificar.

Fora as mortes de artistas e intelectuais, muitas. David Bowie, Leonard Cohen, Ettore Scola, Umberto Eco, Dario Fo, Ferreira Gullar, a lista é vasta. E a banalíssima tragédia que abateu Domingos Montagner.

Na política brasileira, nem se fala. O mar é pequeno para tanta lama. O universo inteiro é lama, em todas as direções. Na empresa em que sonegam o imposto de um cafezinho, no recibo superfaturado do taxi, nos gabinetes, câmaras, assembleias, Senado. Nos Três Poderes, nos Quatro Poderes. Todo mundo implicado, complicado, suspeito. Enquanto isso, a gente trabalhadora desempregada. Apeada, ameaçada de perder direitos sofridos. Sai presidente, entra presidente, sai ministro, entra ministro.

Poderia ser, 2016, um raio de esperança: dias melhores, ao menos na política, virão. Mas já não acredito nisso.

A política foi assim nos outros países também: Brexit no Reino Unido, Trump nos EUA, xenofobia, racismo, intolerância em alta no Ocidente. O sonho de uma humanidade unificada, solidária, parece muito distante, para não dizer inviável.

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E, enquanto eu pensava nessas coisas, neste texto, um avião cai. Morre um time de futebol inteiro, morrem dezenas de jornalistas, morrem tripulantes. Triste. Trágico: quanto mais se investiga, mais se desconfia que não foi Deus, mas a ganância e a burrice que tomaram aquelas vidas.

E, depois, até a nave da Xuxa é atingida por um raio. Quando isso acontece, você sabe que o fim dos tempos se aproxima.

Desgraças, só desgraças. O Jubileu Extraordinário da Misericórdia exigiu que tivéssemos extraordinária misericórdia de nós mesmos - tivéssemos compaixão, solidariedade, piedade, ante a tragédia que batia todos os dias à porta.

Aprendi que nada é tão ruim que não possa piorar. Por isso lhe peço, 2017, que por favor alivie a carga. Traga boas notícias, faça valer a pena esse deserto. Seja grandioso, maravilhoso. Tenha misericórdia de nós. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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