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O dia em que um importante executivo me desprezou porque eu era só uma jovem mulher

Histórias não perdem seu poder porque ocorreram há muito tempo, sejam fábulas ou acontecimentos reais. Porque o que fica é o que imprime da experiência vivida. Comigo, aconteceu assim:

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Por Redação
Atualização:

Nos anos 90 eu trabalhava como repórter do programa Show Business, apresentado por João Dória Jr., o dono do programa e da produtora. João fazia as entrevistas principais no estúdio, chamava os colunistas, ancorava tudo. Eu fazia as externas, de um jeito informal, quebrando um pouco aquela conversa protocolar de terna-e-gravata das pautas empresariais.

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Numa dessas muitas viagens (fiz isso por anos), fui incumbida de entrevistar o presidente de um grande banco. Achei que era uma imensa responsabilidade pra quem fazia a linha 'bem-humorada'.Por isso, me preparei, para não fazer bobagem.

Escolhi o figurino, peguei o avião com a equipe, fui para o local combinado. Fiz a maquiagem, o iluminador montou a luz, câmera acertou o quadro, áudio fez os testes e ficamos aguardando o entrevistado.

Assim que ele chegou, alinhadíssimo, eu o cumprimentei, me apresentei e ele perguntou de forma direta:

- Cadê o Dória?

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Respondi que João fazia o estúdio, que a repórter era eu, que eu o entrevistaria.

- A entrevista não é com o Dória? - perguntou ele, decepcionadíssimo e muito surpreso.

Mais uma vez expliqueique a entrevista seria comigo mesmo. Não era difícil entender o que estava acontecendo. Um presidente de um banco concedeu seu tempo para dar uma entrevista para a TV, acreditando que a conversa fosse com um empresário amigo dele, alguém ~à sua altura~e não com uma repórter de quem ele nunca tinha ouvido falar.

Enquanto essa conversa tensa acontecia, o operador de áudio gentilmente pediu licença para colocar o microfone de lapela no terno dele, os assessores cochichavam coisas e eu estava apavorada que o entrevistado desistisse da gravação e a equipe tivesse que voltar para São Paulo sem a matéria, depois de todo investimento de dinheiro para a produtorafez mandar a equipe toda pra viajar. E a culpa seria de quem? Bingo. Minha.

Consegui fazer com que ele se sentasse a meu lado num pequeno sofá do set escolhido, para que a entrevista começasse.Câmera deu o 'vai'. E aí aconteceu um dos momentos mais absurdos da minha carreira em televisão.

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Ele sentou diante da câmera e respondia tudo assim, olhando para a lente. Eu tentava conversar COM ele, mas ele não dirigia o olhar para mim nem uma vez. Resultado: eu fazia as perguntas olhando para o lado esquerdo de sua cabeça, enquanto ele respondia para frente.E isso estava no vídeo. Isso iria pro ar assim. Eu tentava me concentrar na entrevista, mas metade do meu cérebro minguava com o constrangimento de entender o enquadramento do vídeo.

O entrevistado decepcionado é a carinha contrariada da esquerda e eu sou o pintinho ignorado. Foto: Estadão

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E então a jovem repórter anônima, desempoderada e recessiva, resolveu ter seu momento com o alto executivo famoso, poderoso e dominante. Fui buscar lá no meu âmago de bacharel em física com pós-graduação em física nuclear e mandei uma pergunta complexa fazendo um paralelo entre algo que ele falou e  algum princípio da física quântica. Não sei o que eu perguntei exatamente, mas ele desgrudou o olhar da câmera e... tcharam!! Olhou pra mim. Indignado, mas olhou na minha cara.Pela primeira vez.

Ouvi a resposta e encerrei a entrevista.

Isso foi há muito tempo. Não vi a matéria no ar. Ninguém vai lembrar disso. Nem a equipe, o dono da produtora, ninguém. O entrevistado certamente não vai lembrar do único frame que ele viu de mim.Foi só um momento, um 'flash'. E não vou julgar a vida inteira, a obra, o conhecimento, a postura, o caráter de uma pessoa por um contato desagradável. Mas o momento aconteceu, a experiência foi vivida e o sentimento ficou. Ficaram também as lembranças do esforço em manter minha dignidade mesmo sendo ignorada, a percepção de ser tratada como alguém menor, de não corresponder à importância do entrevistado, da vergonha diante dos colegas, o desespero do meu ego em busca de um 'touché!' para me tornar visível. Disso tudo eu lembro bem.

Lembro também que esse entrevistado era o então presidente do BankBoston, hoje Ministro da Fazenda do governo interino de Michel Temer, o ex-presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.

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Até que eu tenha uma experiência melhor, é esse o gif que arquivei na pasta 'Minha Vida' dentro da minha memória. Sempre que ouvir qualquer notícia sobre o atual Ministro da Fazenda vou lembrar do dia em que entrevistei sua orelha esquerda.

 

 

 

 

 

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