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Cortes finos no tecido online

As Moedas do Século 21 - Parte 1

Por Sergio Kulpas
Atualização:

TEMPO, ATENÇÃO, SILÊNCIO, INTIMIDADE E PRIVACIDADE. Vivemos um mundo onde a noção do que é "valioso" está em transformação. Historicamente, chamamos de "precioso" ou "valioso" coisas que são raras e especiais: alguns minerais como ouro, prata, platina, cristais rochosos como diamantes e rubis. Seguindo a mesma lógica, esses itens impalpáveis, imateriais, são muito raros e especiais, e estão tornando-se as "commodities" mais valiosas do século 21.  Vamos falar aqui sobre cada uma dessas novas medidas de valor e sua influência no mundo atual.

 

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TEMPO

A origem da expressão "tempo é dinheiro" é atribuída a Benjamin Franklin, um dos fundadores dos Estados Unidos como nação independente. Em 1748, Franklin escreveu um curto artigo chamado "Advice to a Young Tradesman" ("Conselhos para um Jovem Negociante", em uma tradução livre). Franklin expressa a ética e a moral do tempo de trabalho convertido em valor monetário. Em meados do século 18, "tempo é dinheiro" foi o mote (e a mola) das Revoluções que se seguiriam. A Revolução Industrial, a Revolução Francesa, a Independência dos EUA, o capitalismo, o mercantilismo global, o imperialismo, o comunismo e outros ismos de melhor ou pior fama. A conversão de "tempo" em "dinheiro" levou os Estados Unidos à posição de domínio econômico no último século e meio.

No nosso século, "tempo é dinheiro" passa a ter um significado bem diverso. Em nações industrializadas, a semana de trabalho de 40 horas está em extinção há muito tempo. Jornadas semanais muito longas, horas extras e períodos muito curtos de férias ou folgas. As empresas também usam as tecnologias digitais para manter seus funcionários trabalhando depois do expediente, avançando pelos finais de semana. O abuso é generalizado, a ponto de a França aprovar uma norma dando o direito ao trabalhador de não responder emails, telefonemas e mensagens de celular fora do expediente. A lei não prevê punição às empresas que descumprirem a norma trabalhista, entretanto.

Há muitas iniciativas louváveis para reformatar essa relação entre tempo e dinheiro nos países industriais. Priorizar a produtividade, valorizar o bem-estar do funcionário, estimular o maior contato com a família e os amigos, otimizar os horários, aliviar as rotinas tediosas. Há uma grande variedade de boas iniciativas, mas são poucas e pontuais, e restritas aos centros urbanos mais avançados.

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Nos países em desenvolvimento, a situação é ainda mais grave. Além de jornadas muito extensas (acima de 12 horas diárias em vários países, sem descanso semanal), os trabalhadores recebem um valor muito baixo pelo trabalho. Muitos bens de consumo originários de países asiáticos, africanos e latino-americanos são produzidos em situações análogas à escravidão. São muito frequentes as notícias sobre mortes por exaustão ou doenças graves relacionadas com o excesso de trabalho em fábricas e "maquiladoras".

Há mais de meio século se previu que a crescente automação da sociedade industrial aliviaria o peso de trabalho sobre os seres humanos. Computadores, robôs industriais e softwares cada vez mais sofisticados libertariam as pessoas de suas rotinas estafantes, de tarefas repetitivas e tediosas - as pessoas poderiam então aproveitar melhor suas vidas. Hoje, está claro que a automação está apenas substituindo e ao mesmo tempo desvalorizando o trabalho dos humanos, isto é, reduzindo a compensação pelo tempo de trabalho. A automação não "libertou" as pessoas de rotinas cansativas, na verdade serve para reduzir custos de produção e em muitos casos criou competidores desleais para os trabalhadores e também é usada como mecanismo de pressão por salários menores e jornadas mais longas. Profissões inteiras estão deixando de existir porque pessoas não podem competir com sistemas automáticos que realizam a mesma tarefa de modo muito mais rápido e sem descanso. Este artigo de Andrew Yang, CEO da Venture for America, pinta um quadro assustador sobre o impacto da automação no mercado de trabalho nos EUA.  Ele cita um estudo da Casa Branca publicado no início deste ano, que prevê que 83% dos empregos que pagam até US$ 20 por hora podem desaparecer devido à automação, e que até 3,1 milhões de empregos de motoristas de automóveis, ônibus e caminhões serão eliminados nos próximos anos. O resultado final não serão pessoas "livres", mas apenas pessoas desempregadas, alienadas da sociedade.

É claro que existem milionários e bilionárias no mundo que trabalham muitíssimo. Há pessoas poderosas que têm jornadas tão longas quanto operários de uma fábrica de aparelhos eletrônicos no Vietnã, que se dedicam sem descanso aos seus negócios. É óbvio que super-executivos como Mark Zuckerberg, Sergey Bryn, Elon Musk, Tim Cook ou Jeff Bezos trabalham muito, mas muito mesmo. Mas não precisam, essa é a questão. Por um capricho, num estalar de dados, esses e outros über-ricos podem decidir que nunca mais vão trabalhar. Não dependem do suor diário do rosto para sobreviver, e nem suas próximas dez ou vinte gerações dependerão.

Em 2017, é rico quem tem tempo para si mesmo. Ser o "senhor do próprio tempo", algo que apenas os monarcas de eras passadas podiam ser.  Tratamos aqui do tempo "ocioso", "não-produtivo". O ócio carregou por séculos um estigma moral muito pesado para as classes abaixo da nobreza. A "preguiça" é um dos pecados capitais. Hoje, é sinal de afluência e importância que alguém disponha do tempo como quiser. É um luxo altíssimo poder delegar todas as tarefas do cotidiano para subordinados (de modo diverso do que era ser um nobre com dezenas, ou centenas de servos séculos atrás).

E quem não possui capital para comprar o próprio tempo de ócio?

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Em 1854, Henry David Thoreau escreveu o ensaio autobiográfico "Walden" (subtítulo: "A Vida nos Bosques").  Thoreau é um pioneiro dos movimentos ambientalistas e do ativismo anti-Sistema dos dias atuais. Em "Walden", Thoreau demonstra aguda clarividência sobre os males da então nascente sociedade industrial. Seus escritos podem ser vistos como o complemento à visão do poeta Walt Whitman, seu contemporâneo. A mensagem é clara: "saiam do sistema, da sociedade! Vão em busca da vida simples (e dura) na natureza!"

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E muitos já seguem o conselho de Thoreau: abandonam as cidades e vão viver "off the grid" no meio do mato. Tornam-se eremitas radicais, vivendo em cabanas ou cavernas. Ou usam todo o arsenal "survivalist" para atingir autossuficiência com certo nível de conforto: painéis solares, turbinas eólicas, hortas hidropônicas, coleta de água de chuva, etc.

Em seu documentário sobre a internet, "Lo and Behold", o cineasta alemão Werner Herzog destaca um grupo de pessoas que sofrem com uma extrema sensibilidade à radiação eletromagnética emitida por aparelhos eletrônicos, linhas de transmissão de energia, celulares, etc. Essas pessoas se isolam da sociedade moderna porque a vida urbana lhes causa agudo desconforto físico. O documentário pode ser visto no Netflix, e foi resenhado por Ruy Flávio de Oliveira no site Confrariando.

É um fenômeno em expansão, tanto que existem numerosos "reality shows" que tem esses eremitas modernos como tema (ah, a ironia...)

Outra possibilidade será o surgimento de hordas nômades, formadas por grandes grupos de desgarrados, não por escolha própria, mas porque foram empurrados para fora da sociedade. Milhões de desempregados e pessoas "obsoletas" para a sociedade tradicional podem precipitar esse "transbordamento" humano. O escritor Bruce Sterling aborda essa ideia no romance "Distraction", onde grandes caravanas de nômades ("proles") cruzam o território dos EUA, nos anos 2040. São autossuficientes ao seu próprio modo: reciclam o asfalto das rodovias para gerar combustível para seus comboios, e podem ser violentos para conseguir alimentos e outras necessidades de sobrevivência.

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O tempo como moeda, como valor, passará por grandes transformações nas próximas décadas, mas certamente será um dos eixos fundamentais da economia do futuro.

Hoje, a máxima de Benjamin Franklin trocou de sinal: "dinheiro é tempo".

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