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Cortes finos no tecido online

A Pedra de Roseta e o Disco de Ouro no Espaço

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Por Sergio Kulpas
Atualização:

O paradoxo da cultura da humanidade: nunca antes tivemos tamanha abundância de criações e trocas entre indivíduos, associações e nações. Muitos milhões de computadores ao redor do mundo e muitos outros milhões de outros aparelhos móveis funcionam como o sistema global de tráfego e registro de centenas de terabytes diários de textos, fotos, músicas, filmes, etc. Mas essa teia mundial de comunicação digital é extremamente frágil: um algodão-doce de fiapos eletrônicos, apoiado em materiais baratos e pouco duráveis.

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Um acidente natural (como uma grande tempestade solar) ou um conflito nuclear podem aniquilar todo esse ecossistema de informações, e causar danos irreversíveis para o legado cultural da espécie humana. Nossa sociedade moderna, que existe a partir da revolução industrial em meados do século 18, privilegiou um modo de produção de bens baratos, que permitem a distribuição em massa por um baixo custo.

Todo mundo já deve ter ouvido falar da Pedra de Roseta. Para resumir, é um fragmento de um monumento egípcio com um decreto do faraó Ptolomeu V, entalhado no ano 196 a.C. O texto aparece em três versões: em hieróglifos antigos, depois em demótico (a escrita egípcia posterior) e por fim em grego clássico. Reencontrada na lama do rio Nilo por invasores franceses em 1799, a Pedra de Roseta foi crucial para que os cientistas decifrassem a antiga linguagem egípcia. Está no Museu Britânico desde 1803 e é a peça mais visitada do acervo. Mais de 2200 anos depois, está praticamente intacta. E poderá permanecer assim por muitos milênios.

Já os Discos de Ouro da Voyager ("Voyager Golden Records") estão a bordo das sondas lançadas pela NASA em 1977. Um comitê liderado pelo astrônomo Carl Sagan criou um "cartão de visitas" da Terra, com sons e imagens do planeta, saudações em 55 línguas e várias obras musicais. Depois de 37 de anos no espaço, a Voyager finalmente rompeu o limite do sistema Solar e deve chegar a 1,6 ano-luz da estrela AC+79 3888 na Constelação de Ophiuchus, dentro de 40.000 anos. Os "discos de ouro" são na verdade feitos de cobre e alumínio, banhados em ouro. Uma amostra do isótopo urânio-238 foi galvanizada na capa do disco. Como o urânio-238 tem uma meia vida de 4.5 bilhões de anos, se uma civilização encontrar a Voyager poderá calcular a idade do disco.

O que a Pedra de Roseta e o Disco da Voyager têm em comum? Ambos registram informações importantes da cultura humana. Ambos são feitos de materiais duráveis. Os egípcios antigos usavam granito para inscrições, porque era um material abundante e de alta durabilidade. A missão Voyager fez os seus discos de ouro pelo mesmo motivo.

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Nossa sociedade de informações digitais tem uma riqueza incomparável e uma fluidez nunca antes vista na história humana. Mas usar granito ou ouro como materiais para o registro permanente de dados é algo impossível. O granito é pesado demais, pouco prático como arquivo. O ouro é economicamente inviável.

Para que nossa cultura resista ao tempo, seria preciso criar materiais sintéticos que sejam duráveis como o ouro e granito, por uma fração do custo e do peso. Substratos finíssimos que não se degradem ao longo de muitos séculos, sem a perda de informações. E isso obviamente vai exigir um sistema básico de codificação/decodificação de dados, que não pode ser um padrão proprietário de uma empresa ou grupo de indústrias deste século ou do próximo. Um código com chave simples, intuitivo. Para que nossa cultura seja impermeável ao desgaste dos séculos, precisamos abrir mão do lucro e da ganância - e não há nenhuma indicação de que estejamos dispostos a isso.

Se quisermos mesmo traduzir a riqueza criativa da humanidade para nossos descendentes mais longínquos ou para hipotéticos alienígenas na constelação de Ophiuchus, precisaremos abdicar dos nossos desejos, de nossos temores. Se queremos ser imortais, não podemos temer a própria morte. Devemos gravar em pedra e ouro (sintéticos) o que nossa carne não poderá contar.

P.S.: Depois de terminar este texto, lembrei que a sonda da Agência Espacial Europeia que chegou ao cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko, a mais de 500 milhões de quilômetros da Terra, foi batizada de "Rosetta".

 Foto: Estadão
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