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Reflexões sobre gênero, violência e sociedade

Quantos talentos perdemos por dividir o mundo entre meninos e meninas?

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Por Nana Soares
Atualização:
Ilustração: Dika Araújo  Foto: Estadão

"Garotas podem usar jeans e cortar os cabelos curtos,Usar camisas e botas, porque é legal ser um garotoMas, para um garoto, se parecer com uma garota é degradante"(Madonna - What it feels like for a girl)

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Onde começa a desigualdade de gênero? Quando nossa sociedade começa a diferenciar meninos de meninas? A rigor, isso acontece ainda antes do nascimento, quando nutrimos expectativas diferentes - e designamos cores e decorações diferentes - para meninos e meninas. Quando assimilamos que ser menino ou menina vai determinar em algum nível qual a experiência que teremos com aquela criança. Vamos no estádio de futebol? Vou comprar toda a coleção da Barbie?

Mas a segregação não acaba quando nasce o bebê. Pelo contrário: seguimos marcando fortemente a existência das crianças pelo gênero, num processo que só fica cada vez mais forte conforme os pequenos crescem. E ao fazermos isso, não só privamos meninos e meninas de uma existência plena e de explorar todas suas potencialidades, mas também adiamos a construção de uma sociedade mais livre e justa.

Precisamos urgentemente falar de gênero na infância. Não só na escola - embora esse debate seja fundamental -, mas em todos os outros ambientes. No convívio familiar, na igreja e nos espaços públicos estamos cercados de regras de gênero, ainda que não nos demos conta disso. Transmitimos muito mais do que imaginamos, tanto pelo o que falamos quanto pelo o que deixamos de falar.

Pode ser repetitivo falar que "boneca não é coisa só de menina e carrinho não é coisa só de menino", mas enquanto isso não for tratado com naturalidade segue sendo mandatório de se dizer.A divisão por gênero já desde a infância nos limita e desperdiça talentos. Sabe-se lá quantos profissionais, atletas e artistas brilhantes não perdemos apenas porque nunca nos demos ao trabalho de expandir o universo de nossas crianças. É preciso uma determinação sobre-humana para que uma menina siga carreira no futebol ou um menino no balé. Um esforço desnecessário e que poderia ser gasto no aprimoramento do talento de cada um ao invés das batalhas que muitas crianças fora dos padrões travam apenas para ser aceitas e validadas.

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Uma vez entrevistei uma coordenadora pedagógica que tinha um projeto incrível numa escola em São Paulo (veja mais aqui). A grande inovação era, em dois dias da semana, deixar todas as crianças - meninos e meninas - brincarem só com um tipo de brinquedo. Um dia era o "dos meninos" e no outro o "das meninas", mas a experiência mostrou que essa divisão existia muito mais na cabeça dos adultos do que na das crianças. Elas se censuravam prevendo a reação tradicional dos supervisores.

Nesse mesmo caso, outra coisa me chamou a atenção: as meninas não tiveram problemas para usar os brinquedos "de menino", mas eles resistiram a usar os brinquedos sempre designados a elas. Por quê? Oras, porque na nossa sociedade o feminino é desvalorizado. Meninos que passam a brincar com coisas "de menina" - e homens que fazem coisas "de mulher" - estão se rebaixando. Repare: é muito mais escandaloso dar uma boneca (ou ferro de passar, vassoura, fogão, etc..) a um menino do que uma bola (ou carrinho, jogos de lógica, guerra ou construção) para uma menina. Quem ousa fazer isso ainda é mal interpretado: não está apenas presenteando uma criança com um brinquedo, mas sim desafiando os costumes ou está "incentivando a homossexualidade". Acabamos por perpetuar as desigualdades e pavimentamos uma sociedade profundamente violenta com as mulheres.

Regras e estereótipos de gênero não servem para facilitar as coisas ou para o mundo funcionar melhor. Não se baseiam em biologia ou verdade universal alguma, são tão efêmeras quanto nosso tempo e geografia. Causam sofrimento a nossos filhos, sobrinhos e netos (especialmente as meninas), e é por isso é nossa obrigação fazer algo a respeito. A ONG Plan Brasil lançou recentemente o #DesafiodaIgualdade, material que recomendo muito para quem está disposto a pensar no assunto e rever suas atitudes.

Falar que é contra a desigualdade é fácil, mas muito desafiador é mudar nossas atitudes. Falamos aqui de transformar uma realidade já muito assimilada, mas que se encontra em plena transformação. Ao dar o exemplo para as crianças, geramos mudanças substanciais já ao fim de uma geração.E melhor ainda, com alterações simples em nosso cotidiano.

Se envolva, converse, faça parte, mude. Qualquer ação conta, menos ficar parad@.

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 Foto: Estadão

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*Você pode conferir o trabalho de Dika Araújo aqui e aqui.

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