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Reflexões sobre gênero, violência e sociedade

"A lei não salva o feto, mas mata a mulher", afirma Cristião Rosas

Coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir comenta a ineficácia da criminalização do aborto no Brasil. 

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Por Nana Soares
Atualização:

Protesto no Rio de Janeiro contra a PEC 181. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Aborto está mais uma vez em pauta no Brasil. Primeiro por conta da primeira aprovação da PEC 181, que pode tornar ilegais mesmo os casos hoje previstos em lei (gravidez decorrente de estupro, feto anencéfalo ou para salvar a vida da mulher). Depois, por conta do pedido de Rebeca Mendes da Silva Leite junto ao STF para interromper sua gestação. A liminar de Rebeca foi negada pela ministra Rosa Weber, mas a luta continua. Já o texto da PEC será votado novamente nos próximos dias.

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Também nesta semana foi divulgada a pesquisa "Percepções sobre o aborto no Brasil", que mostra que quase metade dos brasileiros conhece uma mulher que fez aborto. O resultado atesta mais uma vez que o aborto é uma realidade para as mulheres brasileiras e que é preciso discutir a descriminalização da prática sem hipocrisia. Para esta tarefa, conversei com o ginecologista e obstetra Cristião Rosas, representante no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice- (GDC), uma rede de médicos que defende o acesso a saúde sexual e reprodutiva de qualidade e baseada em evidências. Cristião também é chefe do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Maternidade-Escola Vila Nova Cachoeirinha.

Nana Soares: A  Rede Médica pelo Direito de Decidir enviou uma carta aberta à ministra Carmen Lúcia opondo-se à PEC 181/2015. Por quê?

Cristião Rosas: Nós estamos muito preocupados com a perspectiva de retrocesso no Brasil, porque foi muita luta para obtermos os poucos avanços atuais. Em relação ao aborto, o Brasil está no grupo das nações com legislação mais restritiva (onde estão cerca de 25% dos países). É curioso porque o Brasil é um país que se diz tão ocidentalizado e moderno, mas não consegue avançar nessa discussão. Ela sempre é desviada para uma questão moral. É compreensível que as pessoas tenham suas questões morais e religiosas pessoais, mas criminalizar não resolve, só faz com que percamos fetos e vidas.

 

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E quais as expectativas em relação a aprovação dessa PEC? Você teme que outras propostas similares também ganhem força?

Cristião Rosas: Em termos políticos não temos como avaliar ou prever um cenário, mas o próprio Rodrigo Maia deu a entender que essa proposta não deve ser aprovada em plenário. O que eu acho é que a sociedade brasileira já tem incorporada a convicção de que é um direito o aborto em caso de estupro, anencefalia e risco de vida à mulher.

A confusão é que a pergunta feita é sempre sobre ser a favor ou não do aborto. Isso é um falso dilema ético, ninguém é a favor. Mas, na minha compreensão, quem tem que decidir isso é a mulher, dentro de sua história de vida, seu contexto e seus valores. É ela que decide se vai fazê-lo e por quais motivos, é muito difícil colocar o Judiciário, Congresso ou a Medicina para decidir pela mulher. Isso é de foro íntimo, uma das decisões mais íntimas de uma pessoa. E é importante frisar que não é porque se aprova a legalização do procedimento que todas as mulheres são obrigadas a fazê-lo.

 

E como se dá a proibição na prática?

Cristião Rosas: A mulher que não tem acesso seguro ao abortamento vai fazê-lo mesmo assim, mas com consequências importantes, inclusive o risco de vida. Essa é, ou deveria ser, a discussão. Tomando de exemplo os países democráticos que fizeram essa discussão, dá para dizer que ela nunca é fácil, sua natureza é sempre conflituosa.Mas as pessoas precisam ser sensibilizadas e entender sobre o que estamos conversando. É preciso entender o que são direitos humanos, saúde sexual e reprodutiva, direitos sexuais e reprodutivos, fazer uma reflexão abrangente e bioética.

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 Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil

E como os médicos deveriam atuar em relação a isso? Porque hoje, com aborto na ilegalidade, não são raros os casos de equipes médicas denunciando as mulheres à polícia ou recusando atendimento.

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Cristião Rosas: O médico tem bem estabelecidos legalmente os limites éticos de sua atuação. Tanto pelo Conselho Federal de Medicina, quanto pelo código de ética. Não quebrar o sigilo do paciente é um dos princípios centrais da atuação médica. Existem muitos casos em que os pacientes só relata fatos íntimos porque precisa de tratamento e o médico precisa saber. Denunciar o paciente quebra totalmente essa regra. Fora que a Constituição brasileira garante o direito à privacidade das pessoas e o Código Penal diz que é crime relatar fatos que chegam a seu conhecimento pelo exercício de seu ofício. São pouquíssimos os motivos em que é permitido ao médico informar um dado sem a aprovação do paciente. Aos meus alunos, digo: na dúvida, nunca quebre o sigilo.

No caso de aborto, mesmo que ele não seja permitido pela lei, a paciente tem que ser acolhida. Os dados devem ser anotados no prontuário, mas ela não pode ser denunciada. Isso é criminal e eticamente ilegal. Médico deveria estar acolhendo e informando: entender porque aconteceu, perguntar se a mulher usa contraceptivo, fornecer as informações e medicamentos necessários e fazer o tratamento adequado, não ser preconceituoso. Há normas e protocolos que estabelecem os procedimentos, e inclusive a prática aponta que esse atendimento é um bom momento para inserir a mulher no sistema de saúde.

 

E por que há tanta resistência em discutir a prática?

Cristião Rosas: As pessoas acreditam que criminalizar o aborto faz com que ele diminua, mas isso não acontece em nenhum lugar do mundo. Pelo contrário, criminalizar aumenta o número de procedimentos, basta analisar os dados.

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No Brasil, a estimativa chega a 600 mil, 800 mil abortos ilegais por ano, o que significa dizer um aborto para cada três partos com feto vivo. Nos países que descriminalizam a prática, em um primeiro momento os números aumentam, até porque consegue-se mapear a verdadeira extensão do problema, mas depois os abortos vão gradativamente decrescendo. Aqui nossa lei nem reduz o aborto nem salva o feto, mas mata as mulheres. Se ela tem alguma eficácia, é matar mulheres.  

Um estudo norte-americano analisou a mortalidade materna ao longo de 10 anos, destrinchando todas as suas causas. Foi observado que o aborto era na verdade o procedimento obstétrico mais seguro de todos. Isto é, foi o que menos matou em comparação com as outras causas (0.5 mortes para cada 100.000 procedimentos. Em comparação, a mortalidade causada por abortos espontâneos foi de 1.7). Deixar uma mulher morrer por aborto é a maior atrocidade humana que pode existir, ela não deveria estar morrendo. Tenho grande dificuldade de compreender como o Parlamento pode deixar isso acontecer. É necessário realizar uma discussão séria e baseada em evidência científica, exatamente o trabalho da Rede de Médicos pelo Direito de Decidir.

 

O que faz com que os abortos diminuam?

Cristião Rosas: O que reduz o número de abortos inseguros é o planejamento familiar de alta qualidade, amplo e irrestrito, incluindo a educação sexual. Ao contrário do que muitos deputados dizem, isso na verdade posterga o início da vida sexual e diminui o número de gestações indesejadas.

No Brasil o planejamento familiar não acontece como deveria. Por exemplo, há municípios que regulam a distribuição da contracepção de emergência (pílula do dia seguinte) com a falsa alegação de que é um procedimento abortivo, o que não é. Quantas adolescentes não engravidaram desnecessariamente porque esse direito lhes foi negado?

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Em relação ao caso de Rebeca, você acha possível que o pedido seja bem sucedido?

Cristião Rosas: Desde a discussão sobre células tronco, eu fiquei emocionado e orgulhoso com as falas de alguns juízes do STF. Foram reflexões muito profundas. Então penso que sim, temos uma chance por aqui, Há outros países que avançaram a legislação via Judiciário, utilizando o princípio da dignidade humana.


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