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Reflexões sobre gênero, violência e sociedade

A Lei Maria da Penha pode estar em risco. Entenda o porquê

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Por Nana Soares
Atualização:
Imagem: Marcos Santos/USP Imagens Foto: Estadão

O Senado aprovou, na noite de terça-feira (10), o PLC 07/2016, que prevê algumas alterações na Lei Maria da Penha. Entre elas, estão:

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- A possibilidade de os delegados de polícia concederem medidas protetivas de urgência (como o afastamento do lar e a impossibilidade de contato entre as partes) - A priorização de profissionais mulheres no atendimento de vítimas de violência - A recomendação para a criação de mais delegacias da mulher e centros de atendimento especializados

Pode não parecer, mas esse projeto é muito polêmico, especialmente por causa do artigo que concede aos delegados o poder de concessão das medidas protetivas. Ele foi alvo de intenso debate e mobilização em 2016, quando o PLC entrou em votação. Seus defensores garantem que é uma possibilidade de agilizar o atendimento às mulheres vítimas de violência, ao passo que os contrários argumentam que ele não foi debatido com a sociedade e, principalmente, que pode tornar inconstitucional a Lei Maria da Penha, uma conquista do movimento de mulheres brasileiro.

Ano passado, quando era apreciado em Comissões do Senado, diversas associações de mulheres (inclusive o Instituto Maria da Penha) e de aplicadores do Direito, manifestaram-se contra esse artigo. Agora, aprovado pela Casa, ele vai para sanção do Presidente Michel Temer, constitucionalista que participou da criação da 1ª Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) do Brasil, em 1985.

Para entender melhor porque um detalhe jurídico, despercebido pela maioria das pessoas, pode colocar a Lei e sua constitucionalidade em risco, conversei com Ana Rita de Souza Prata, que é a Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

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Confira:

Nana Soares: A ideia de dar aos delegados o poder para conceder medidas protetivas de urgência para as mulheres vítimas de violência é bom ou ruim? E por quê?

Ana Rita de Souza Prata: Além de ser ruim é inconstitucional. É ruim porque ela cria a falsa sensação de que a mulher tem apenas a via criminal para buscar as medidas protetivas. Isso não é uma exigência da lei Maria da Penha, que dispõe ser necessário existir violência doméstica e familiar, e não crime. Nas condutas descritas pela lei, nem todas são crimes. Isso é muito importante, porque nem toda mulher quer levar o seu caso ao conhecimento da polícia, mas isso não faz com que ela perca o direito de ser protegida.

 

Nana Soares: Como assim?

Ana Rita de Souza Prata: A rigor, não é necessário um boletim de ocorrência para ter acesso a uma medida protetiva. Mas hoje os juízes em sua maioria o exigem - ou seja, a lei já é aplicada de forma torta. Se isso ficar a cargo da polícia, a situação vai piorar. A Lei prevê mecanismos para o fim do ciclo da violência que não são apenas a via criminal. Ou seja, caso as emendas sejam sancionadas, reforçamos a sensação de que não há alternativas para a mulher que não quer seguir por esse caminho, que não seja fazer o BO.

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A pesquisa "Violência contra a mulher e práticas institucionais" mostra que 80% das mulheres têm como objetivo parar de sofrer violência, e não punir criminalmente o agressor. Há casos em que a mulher desiste de procurar a Justiça se não há outra alternativa, seja porque não confiam na polícia, porque o agressor pode ser um policial ou quaisquer outro motivos. Por isso, os Promotores de Justiça e a demais aplicadores da lei têm tentado encontrar alternativas que não a criminal para tentar por fim ao ciclo da violência.

 

Nana Soares: E por que esse artigo do PLC é inconstitucional?

Ana Rita de Souza Prata: Porque ele prevê um ato de jurisdição pelo Delegado de Polícia. Só o juiz pode decidir por restringir direitos de uma pessoa. A única exceção é a prisão em flagrante, um caso previsto na Constituição. Essa reforma não está de acordo com o que é a Lei Maria da Penha, construída em conjunto com as mulheres e na contramão da ideia de punitivismo. Penso que se o presidente não vetar esse artigo, a Lei Maria da Penha será submetida a uma análise de constitucionalidade no STF.

 

Nana Soares: A justificativa para essa mudança é a demora do Judiciário em conceder as medidas protetivas. Isso não é realmente um problema?

Ana Rita de Souza Prata: É, embora não seja generalizado. Há locais em que as medidas são concedidas dentro do prazo. Mas o que acontece é que há um segundo momento crucial: não basta conceder a medida protetiva, o agressor também tem que ser intimado, notificado formalmente disso. É aí que está a demora: as medidas chegam a ser concedidas rapidamente, mas a intimação pode demorar meses, e sem ela não é possível. Sem a notificação formal, a medida protetivas não têm valor legal. Ou seja, o problema persiste mesmo que sejam os delegados a conceder as MPs.

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Também me pergunto como um delegado faria isso, porque falamos de uma realidade precária, com delegacias sem pessoal, com uma única viatura. Delegacias que já têm dificuldade para cumprir o que a lei determina hoje. Qual a garantia que isso não vai acontecer após a mudança? A justificativa é a demora do Judiciário, mas se for para Delegacia demorar tanto quanto o Judiciário ela não tem mais razão de ser.

 

Nana Soares: Então você acha que essa nova configuração não é viável na prática?

Ana Rita de Souza Prata: O verdadeiro objetivo dessa mudança é dar poder de juiz ao delegado. Efetividade eu não acho que vá ter, ela parece boa mas quem está no dia a dia da aplicação da lei sabe que não vai dar certo. Ela vai criar uma expectativa porque muitas mulheres, compreensivelmente, não sabem que o agressor tem que ser intimado e saem com um papel na mão achando que estão protegidas. No meu entender, há outras questões que deveriam passar por escrutínio do Legislativo, porque há vários mecanismos previstos em lei e que não são aplicados, muito mais do que as medidas protetivas.

O que me preocupa é que, com isso [as novas emendas], corre o risco das mulheres entenderem que a via criminal é a única alternativa. E que se essa via não cabe à realidade delas, então não podem se valer da lei.

Nana Soares: E as outras deliberações, como o atendimento feito prioritariamente por policiais mulheres e a demanda por mais delegacias e centros especializados, são positivas? São reais demandas das mulheres?

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Ana Rita de Souza Prata: Sim, há a demanda, mas transformar isso em realidade é outra coisa. Mesmo em São Paulo, estado onde atuo e que é privilegiado, é complicado. A Polícia Civil está com defasagem de pessoal, não há capacidade para atender as demandas atuais.

A CPMI da Violência contra a Mulher já havia recomendado ao governo de São Paulo que as Delegacias da Mulher funcionassem initerruptamente, e foi só esse ano que a primeira delas, criada em 1985, passou a ter atendimento 24h. Ou seja, é só uma delegacia, na capital. Tem cidade que nem delegacia da mulher tem. Para resolver isso é necessário investimento, tanto para a realização de novos concursos como com todos os gastos implicados na construção de uma DEAM, como a infraestrutura, os carros, os equipamentos de tecnologia, etc. Se isso acontecer, é a longuíssimo prazo.

Em outras palavras, a lei é de 2006 e ainda não é efetivada da forma que deveria. Essa reforma traz outros direitos (legítimos), mas que na prática eu não vejo sendo aplicados nesse momento. Não nessa realidade.

Nana Soares: Então essas recomendações já estão previstas na atual redação da Lei Maria da Penha?

Ana Rita de Souza Prata: Exatamente. Esses artigos dão a sensação de conquista, mas não é nada que já não esteja previsto em outras normas.

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