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Um outro olhar sobre as notícias

O médico cristão que defende o aborto

Por que nem sempre quem é a contra a interrupção da gravidez está a favor da vida

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Em 1993, o médico David Gunn foi morto a tiros em Pensacola, na Flórida. Em 1994, o médico que o substituiu, John Britton, também foi assassinado. Em 1998, outro médico, Barnett Slepian, levou um tiro fatal em Amherst, Nova York. Em 2009, o médico George Tiller foi atingido na cabeça em Wichita, no Kansas.

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Todos eles trabalhavam em clínicas de aborto - procedimento legal nos Estados Unidos - e foram vítimas de radicais do movimento pró-vida. Parece surreal, mas há quem se intitule pró-vida e cometa um assassinato. Há quem se diga pró-vida e também defenda a pena de morte. Há quem vista essa camisa, mas queira liberar o porte de armas num país que tem 59 mil homicídios por ano.

São pessoas pró-vida, mas não qualquer vida. Algumas vezes, usam o discurso religioso para criticar a interrupção da gravidez. Mas se esquecem dele quando a vítima não é um embrião. Essas incoerências sempre me chamaram a atenção.

É fácil perceber por que alguém religioso não deveria defender o assassinato, a pena de morte ou o porte de armas. Para ficar no cristianismo, o mandamento é 'não matar'. Defender o direito ao aborto da perspectiva religiosa, porém, é mais difícil. Mas é o que o médico Willie Parker faz em seu livro Life's Work: A Moral Argument for Choice (algo como Trabalho da Vida: Um Argumento Moral Pró-escolha).

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O médico cristão Willie Parker, que decidiu ajudar as mulheres a fazer abortos seguros. Foto: Divulgação/Trilogy Filmss

Durante boa parte de sua carreira, Parker foi obstetra e não fez abortos por objeções morais e religiosas. Nascido no Alabama, foi educado no cristianismo e, aos 15, se tornou batista. Na igreja, viu adolescentes e mulheres grávidas serem repreendidas pelo pecado de engravidar fora do casamento, enquanto os homens, igualmente responsáveis, eram brindados com o silêncio. "Quando jovem, minha identidade cristã era mais importante para mim do que questionar as inconsistências da minha fé", ele disse à revista Newsweek.

Algo mudou para Parker depois de refletir sobre o último sermão de Martin Luther King Jr. Na fala, o pastor batista líder do movimento negro usa a parábola do Bom Samaritano. Na história, citada no evangelho de Lucas, um homem é assaltado, espancado e deixado seminu para morrer na estrada de Jerusalém para Jericó. Um sacerdote, quando o viu, desviou pelo outro lado. Outro religioso fez o mesmo. Até que um homem de outro povo, um samaritano, decidiu cuidar de suas feridas e levá-lo para a cidade.

"Para o samaritano, era um viajante caído. Para mim, uma mulher grávida", diz Parker. O médico se deu conta de que estava deixando de ajudar as mulheres porque temia o julgamento de outros cristãos. Ele afirma ainda que o aborto não é citado na bíblia. "A morte de um feto é considerada uma perda, mas não um crime capital. E, nas escrituras judaicas, um feto se torna humano quando - e somente quando - sua cabeça emerge do corpo da mãe", afirmou em entrevista ao site Quartz. Essa ideia de que a vida começa na fertilização do óvulo pelo espermatozoide é muito mais recente.

Em 2002, Parker decidiu fechar sua clínica obstétrica e deixar o conforto de sua cobertura no Havaí para oferecer aborto seguro em três estados do Sul dos EUA. Faz cerca de 1000 procedimentos por ano, em mulheres com menos de 25 semanas de gestação e que não estejam sendo coagidas a interromper a gravidez, como Elisânia Leal, que acabou sendo assassinada por se negar a fazer um aborto.

Ele se lembra, por exemplo, do caso de uma mulher que descobriu que, devido a uma grave síndrome, seu bebê não desenvolveria pulmões. Por motivos religiosos, ela se negou a interromper a gravidez. O bebê morreu dolorosamente logo após o parto: não conseguia respirar. "Nesse caso, a reverência absoluta à vida levou a uma situação, a meu ver, de nada menos do que pura crueldade", diz o médico ao jornal The New York Times.

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Parker conta ainda um outro caso para nos lembrar que as situações podem ser mais complicadas do que imaginamos. Uma menina de 12 anos, na sala de espera de sua clínica, foi questionada por outra paciente: "Com quem você andou se metendo? Você não sabe que não é para andar com esse tipo de garoto?". A menina respondeu: "Não é um garoto. Ele tem 53 e é meu pai". 

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Parker, médico e cristão, vem sendo alvo de protestos e ameaças. Em 2016, recebeu a primeira ameaça explícita de morte. E corre o risco de se juntar aos outros médicos assassinados por radicais num momento em que o direito ao aborto vem sendo duramente questionado por alguns setores da sociedade americana.

Mais de 200 leis estaduais aprovadas na última década têm dificultado o acesso ao procedimento. Com a eleição de Donald Trump, que se declara pró-vida, a situação não deve melhorar. O documentário Trapped mostra a ofensiva do movimento contra o aborto nos EUA e como é o dia a dia da clínica de Parker.

Nesses tempos de polarização e até violência, a história desse médico cristão serve para abalar um pouco as certezas que todos temos sobre o certo e o errado. E para expor algumas incongruências de quem diz ser pró-vida.

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