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Comportamento Adolescente e Educação

'Minha família toda pegou COVID'

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Por Carolina Delboni
Atualização:

Diário de uma família, entre tantas outras, que contraiu COVID-19 no fim do ano e passou as festas em casa fazendo quarentena

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31/12/21 - véspera de ano novo Meu cunhado toca a campainha. Veio trazer uma comida para a ceia minha e dos meninos. Abri o portão de casa, ele de máscara, segurando uma daquelas cestas grandes de transporte de comida de supermercado. Me olha e diz "que zica hein cunhada". Que zica, cunhado.

Tenho tatuado "sorte" em ideograma chinês, no braço direito. Sempre achei que "sorte" era uma palavra que deveria me acompanhar bem de perto. Grudada. Tatuei aos 19 anos porque já me considerava uma pessoa de sorte. "Rabuda" como me chamam na família. "Ela tem o santo forte", eles dizem.

Tenho, tive, talvez ainda o tenha. Não sei. Tive uma diretora nipônica que um dia me falou que eu tinha sorte e disse que sorte só tem quem é merecedora de outras vidas. Sorte, segundo a cultura japonesa, é um merecimento da vida. Eu tinha sorte.

 Foto: Estadão

Rebobina pra 21/12/21 Filho 1 chega do exterior onde está estudando pra passar férias. Vai no lançamento do meu livro, Lugar de fazer morada, na livraria Martins Fontes e depois sai para encontrar os amigos.

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22/12/21 Acorda com muita tosse, peito cheio, cansaço e febril. Toma banho e eu digo a ele para se deitar e descansar, "pode ser a viagem, você dormiu pouco e tem toda a ansiedade de chegar aqui". Ele não vai ao almoço na casa da avó e dorme a tarde toda. À noite, temos o jantar de Natal na casa do meu pai, o avô. Filho 1 se levanta melhor, toma um banho e se sente bem para ir.

Peço pra que ele vá de máscara e ele a mantém no carro e na casa do avô. Até, até... começarmos a comer e conversar. Congela na cena: filho 1, filho 2, avô e sobrinha grudadinhos conversando em pé e filho 1 sem máscara.

23/12/21 Filho 1 acorda, toma um banho e diz que não está se sentindo bem. Está febril ainda. Ele trouxe um teste de antígeno que a escola fornece aos alunos. Eu: "cadê o teste que você trouxe? Pode fazer porque tô achando estranho".

Minha prima no whatsapp: "Cá, tem alguém na tua casa pra receber as bebidas?" Calma! Não vem. Acho que a gente vai precisar organizar o desmonte do Natal.

? O antígeno deu positivo ? Mas tem certeza?! Espera ? Não tem falso positivo de antígeno, pode desmarcar tudo ? Não vou ficar aqui, sou a senha 50 e tem previsão de 4h de espera ? Ferrou! A gente viu ele ontem e tava todo mundo sem máscara ? Você já avisou teus amigos? Precisa avisar ? Todo mundo tem que fazer o PCR, todo mundo ela disse ? Gabi, alguma chance de você cancelar minhas duas tortas de amanhã? ? Mas de novo a gente não vai fazer Natal? ? Infelizmente, tô atendendo muita gente esses últimos dias com teste de Covid positivo ? Precisa isolar ? Gente, Natal cancelado

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Natal cancelado. Eu ia usar a toalha de linho q foi da minha vó Norma e q agora me é presente. Tudo pronto. A casa estava - está - linda. Sobrevivemos até aqui e pareceu que ia dar tudo certo. Tava dando, né? Vinham os primos e os tios que não vieram ano passado. Já tinha até colocado umas cadeiras em rodinha no jardim pros adolescentes.

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Desmontei tudo. Filho 1 já devidamente isolado. Daniel, marido, começa a se sentir mal. Tem uma "coceirinha" na garganta e um certo "desconforto" no corpo. Resolve dormir na sala neste dia.

24/12/21 Daniel sai cedo pra fazer um PCR. Eu circulo pela casa normalmente com filho 2 e filho 3. De noite tem Natal e a mãe dele prepara pra gente uma linda ceia. Tocam a campainha de casa, final do dia, pra desejar boa festa e melhoras à família.

Resolvemos jantar no jardim que é grande e os cinco podem ficar juntos com respiro de distância pra lá de boa. Eu começo servindo a comida e no meio da coisa Daniel checa o resultado do seu PCR: positivo.

Pânico, congela tudo, rebobina as cenas, os movimentos todos da casa nas últimas 24h. A gente tinha dormido juntos, usado o mesmo banheiro, falado pertinho.

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"Felipe, pega aqui pra servir, eu não posso mais servir ninguém. Devo ter pegado esse negócio". Sexta-feira, noite de Natal, me dei conta que também estava com a tal "coceirinha" na garganta.

25/12/21 Acordei péssima!!! Garganta super dolorida, corpo moído de tem está com febre. Saio a procura de uma farmácia que tenha antígeno disponível sem agendamento. Minha irmã encontra uma e me avisa. Eu e a torcida do Palmeiras na farmácia. Minha vez, senta, inclina a cabeça, raspa a secreção do nariz e espera. Nem dois minutos e... positivo.

Pânico de novo, terceira vez. Preciso dar um jeito de tirar filho 2 e filho 3 de casa porque esses meninos vão se contaminar, não tem jeito.

Minha irmã oferece o quarto da garagem na casa dela e os meninos vão pra lá, mas antes param na farmácia pra fazer o antígeno. Ambos negativos e agora se juntam num mesmo quarto.

Congela na cena de ontem em que eu estava servindo a comida do Natal e depois troco de posto com o Felipe quando a gente descobre que o Daniel também está positivo.

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26/12/21 Meninos acordam bem e sem sintomas. Filho 1 já não tem mais febre, tosse forte ainda, dor de cabeça e nos olhos. Daniel também tosse forte, tem dor no corpo e febre. Eu, zero tosse, dor de garganta e muita dor no corpo.

27/12/21 Meninos acordam bem e sem sintomas. Filho 1 já está quase zerado. Daniel faz aniversário e comemora com o Covid. Mas o corpo já está melhor, sem febre. Eu, tô no pior dia. Dói tudo no corpo, nem consegui dormir a noite. O corpo não acha posição. Dói em volta dos olhos, dói a cabeça. Tô completamente congestionada.

28/12/21 Hoje é o 5º. dia e a família toda precisa testar. Avós, primas, tios. Todo mundo que teve contato direto com o filho 1 precisa fazer um PCR. Já fizeram antígeno na farmácia e todos estão negativos, mas só o PCR confirma.

Minha irmã vai viajar e os meninos precisam sair da casa dela. Meu pai resgata os dois e antes de levá-los pra casa resolve parar numa farmácia pra fazer um antígeno e ver se podem tirar a máscara e ficar mais à vontade.

Eles estão sem sintomas, mas filho 3 testa positivo. Pânico 4. Incrédulos, seguem a uma segunda farmácia pra confirmar o teste. "Não é possível, ele diz que não sente nada". "Felipe, você não está sentindo nada, nada???". Nada.

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Segundo teste, segunda farmácia, positivo. Filho 2 continua negativo. Agora rememora a cena do Natal, da gente servindo comidas juntos. E pode panicar mais uma vez porque filho 2 e filho 3 estavam dormindo juntos no mesmo quarto, portas e janelas fechadas.

Filho 2 que estava imune até agora deve positivar ou "vocês podem colher meu sangue e mandar pra Oxford estudar". Volta todo mundo pra casa e filho 2 fica isolado no quarto, é o que chamam de isolamento reverso. Afinal a casa está dominada por uma família de COVID.

29/12/21 Todos já estão melhores em casa. Filho 3 continua assintomático. Um cansaço geral domina o corpo e a gente que passa a tarde vendo filmes no sofá. "Qual vamos ver hoje? Pode pedir um doce? Mãe, pede um doce".

30/12/21 Filho 1 faz um antígeno e negativou. Está liberado. Filho 2 faz um PCR na esperança de dar negativo e ele poder passar o réveillon na praia como o combinado desde agosto. Alugaram uma casa, organizaram a viagem, os amigos já estão esperando por ele. E a gente esperando o resultado do exame. 1h da manhã e nada ainda.

31/12/21 "Carol, minha filha, saiu o PCR do Lucas?" Entro no site do laboratório e está lá: positivo.

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Ninguém se salvou nessa família. Ao longo de quase dez dias, uma pessoa testava positivo. Ao longo de quase dez dias, a gente viveu um caos dentro de casa. Ao longo de quase dez dias, a gente refez todos os planos, desmontou as expectativas e tentou criar outras. A gente sonhou e desistiu. A gente chorou, ficou com raiva e depois se divertiu da desgraça.

Ao longo de quase dez dias fiquei pensando na "tal" da sorte, no merecimento dela. Será que estou deixando de merecer? Será que tenho errado em algum lugar? Será que eu deveria por isto em jogo neste momento? É pra isso?

Será que baixamos a guarda e abraçamos demais? Três amigas também testaram positivo neste intervalo de tempo. Filho 1 conta que doze pessoas que ele conhece testaram positivo neste fim de ano.

Sobrevivemos até aqui e pareceu que ia dar tudo certo. Tava dando, né? Foi tão longo o tempo das ausências que não demos conta de mais tempo com menos abraços. Talvez tenhamos abraçado e beijado demais quem não se via há tanto. Talvez.

Minha família toda pegou COVID neste fim de ano. Sobrevivemos e vivemos. Não só à doença, certamente porque estamos todos vacinados, mas aos sentimentos todos que a acompanham e que talvez, talvez, sejam tão difíceis quanto ela própria.

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Podia ter sido pior? Sempre pode. Assim como pode ser melhor também. Não gosto dessa mania nossa de sempre anemizar ou anular os sentimentos "ruins" em nome desse "ah, mas podia ser pior né?" ou "dos males o menor".

Dos males o menor, sem dúvida alguma, mas foi duro enquanto durou. Foi sofrido. Foi sofrido com todos os recursos e privilégios que a gente tem. Porque dói no peito da gente. Dói o pulmão e dói o órgão que carrega o sentir. Dói.

E doeu do dia 23 de dezembro de 2021 até 10 de janeiro de 2022. Até o último negativar e a família se liberar por completo. Dezenove dias fechados na nossa concha. Dezenove dias da gente tentando se distrair e fazer companhia um para o outro. Deu pra assistir todos os lançamentos da Netflix e as séries atrasadas. Ler não deu, o olho doía. Fizemos biscoito, fizemos rabanada. Fizemos nada também. Entediamos.

Mas foram dezenove dias da gente se cuidando um tanto. Da gente entendendo os meandros do amor. A gente junto deu conta de se salvar um pouquinho a cada dia. Se eu tenho sorte? Acho que tenho.

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