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Comportamento Adolescente e Educação

Cigarro eletrônico é a droga da adolescência

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Por Carolina Delboni
Atualização:

Uso de cigarro eletrônico cresce entre adolescentes e preocupa não só pais, como médicos, mas segundo o psicólogo Marcelo Veiga existe um cenário favorável à experimentação das drogas nesta fase e é preciso construir debates para avançar

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A preocupação com o uso do cigarro eletrônico, popularmente conhecido como vape ou pods, talvez seja das angústias atuais que mais ocupam o tempo de pais de adolescentes. Praticamente impossível de controlar, sem saber onde e com quem eles compram, muito menos onde guardam, o tema vira e mexe é assunto de grupos de whatsapp.

Proibido no Brasil, desde 2009 pela Anvisa, e comprovadamente um mal à saúde não só de jovens, como dos próprios adultos, o cigarro eletrônico se popularizou brutalmente durante a pandemia e rola solto em portas de escola, baladas e festas em casa de amigos. Adolescentes usam o dispositivo eletrônico como se não houvesse amanhã e há pouca gente capaz de convencê-los que o cigarro faz mal.

Cigarro eletrônico Foto: Estadão

Marcelo Veiga, psicólogo especialista em adolescentes, faz um alerta para além dos efeitos físicos e da dependência química que a droga pode causar no organismo. Há um viés que costuma ficar esquecido: o que leva adolescentes a usarem o cigarro? O que tem por trás deste hábito? "Precisamos construir debates para avançarmos nesta conversa, senão é 'apenas' a proibição pelo mal", provoca.

No universo das redes sociais, o dispositivo moderninho faz parte da narrativa de uma vida irreal, em que tudo parece ser ainda mais interessante, descolado e sedutor. O que não difere da visão distorcida que se tinha há mais 30 trinta anos quando o cigarro convencional era visto como sinônimo de glamour, luxo e poder. Haja visto as propagandas de marcas como a extinta Hollywood que mostrava pessoas bonitas, independentes e bem-sucedidas em lugares paradisíacos.

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"Na adolescência surge um interesse que leva os jovens para algumas situações de experimentação, entre elas, as drogas. Nesta fase da vida há uma busca pela consolidação da identidade. A possibilidade de separação dos pais como grande referência para a vida, eleva o status do grupo como novo lugar preferencial de identificação" comenta o psicólogo Marcelo Veiga.

Para ele, este comportamento está ligado à experiência da autonomia. O especialista avalia que os jovens são bem mais capazes de cuidar de si mesmos, ainda que os cuidados sejam questionáveis do ponto de vista dos adultos. "Mas eles fazem muito mais escolhas por eles mesmos e se juntarmos esses elementos com o afastamento dos pais como necessidade de busca pela identidade própria, à busca por escolhas individuais, à força do grupo e o inevitável sentimento de onipotência que isso tudo desperta, temos um cenário favorável à experimentação de drogas. A cultura humana busca, desde seus primórdios, experiências com a percepção do mundo. Os adolescentes as farão também", declara Marcelo.

O psicólogo discorre sobre como a busca de uma identidade mais integrada e concisa é algo não tão óbvio e, nesse contexto, qualquer ajuda pode ser bem-vinda, qualquer adereço identitário pode ser usado, inclusive o cigarro eletrônico.

Na Inglaterra, o cigarro eletrônico tem venda liberada e já existem alternativas chamadas de naturais, a base de plantas e zero nicotina Foto: arquivo pessoal

Veiga faz uma analogia com os cabelos compridos dos Beatles na época em que despontaram. "Eles fumavam que nem uns loucos, mas os cabelos é que preocupavam. Tinha uma marca identitária sendo buscada ali. Aqui já ouvimos falar das tribos em décadas passadas. Acredito que o cigarro eletrônico vem neste lugar de adereço identitário. Ele traz a possibilidade de sentimento de transgressão, de aproximação com o mundo adulto desejado pelos jovens, mas que não pode ser confundido com o dos pais. Serve de afirmação para si e para o grupo de que há um movimento sendo feito. Ao mesmo tempo, ele é fácil de esconder dos pais, não deixa tanto cheiro depois. Vira um bom objeto de poder, de desejo e de afirmação", completa.

A busca por este sentimento de pertencimento diante do mundo pode fazer com que algumas "válvulas de escape" pareçam ser uma boa saída. Parece também que nos tornamos mestres em fazer as coisas não tão boas parecerem extraordinárias com o poder das redes sociais em mãos.

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A sociedade do nosso século, a que fazemos parte, é chamada de "sociedade do espetáculo" e não à toa somos capazes de criar cenas de desejo no Instagram ou TikTok. Neste cenário, na tentativa de mostrarmos coisas boas, parecemos muito superiores do que realmente somos e cria-se a sensação de perfeição. Veiga alerta para a necessidade exacerbada de querermos ser visto por "ser bom" quando outros sentimentos perdem espaço e isto se torna preocupante.

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Para os especialistas em saúde, reforçar a conscientização da população, em especial os pais, sobre os agravos à saúde e aos danos sociais e econômicos que esse vício pode trazer aos seus filhos é um possível começo, além do reforço de políticas públicas de enfrentamento com informação e acolhimento.

Guilherme Messas, psiquiatra há mais de 25 anos, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP) e chefe do Comitê de Regulação de Álcool (CRA), expõe o massacre que a sociedade enfrenta com as desinformações dirigidas a reduzir a percepção de risco dos vaporizadores. "Ela fica perdida entre o que ouve da indústria - e que em geral não sabe que vem da indústria - e do que ouve da literatura científica especializada", explica.

No entanto, o médico afirma que o Brasil tem uma ótima experiência com o controle do tabagismo e que bastaria aplicar ao caso dos cigarros eletrônicos as mesmas medidas que vêm sendo aplicadas ao cigarro comum. "Funciona convencer pais e a sociedade que a prática é de risco e regular fortemente o uso, por exemplo proibindo que se use em qualquer lugar. Fazendo a lei funcionar" diz.

Jaqueline Scholz, cardiologista e especialista da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), informa que ainda não existem dados oficiais de óbito por conta do produto, como já está sendo mensurado nos Estados Unidos, onde o item é vendido por lá há bastante tempo. "No Brasil é que a gente vê esse uso absurdo, principalmente no pós-pandemia, o que considero um retrocesso nas campanhas antitabaco," desabafa Jaqueline.

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Já o psicólogo Marcelo Veiga acredita que pensar em situações multidisciplinares envolvendo a sociedade, a educação e outros órgãos podem ajudar mais. "Os jovens querem ser escutados. Será que temos escolas capazes de fazer debates mais franco com eles? Será que temos espaços sociais em que eles possam conviver e tomar decisões, dentro do que é pertinente para idade?".

Para ele, é preciso falar e agir muito mais fortemente pensando na convivência ética. "Precisaríamos pensar coletivamente em detrimento do enaltecimento excessivo do indivíduo que está sempre querendo mais atenção, mais espaço, nem que isso implique riscos a ele mesmo".

Marcelo não acredita que as drogas deixarão de existir e nem de serem usadas, mas na sua percepção é importante pensar quais valores que estão sendo atribuídos à experiência da coletividade. "Isso é repensar a convivência. Se minha satisfação está pautada pelo olhar do outro, pela 'curtida', estamos reduzindo as relações a uma espécie de palco e esquecendo de outras qualidades e virtudes que nos tornam únicos e interessantes. A ideia de identidade e de relação não pode ser confundida o tempo todo com exibição. É nessa confusão que nos fragilizamos. Não acho que esse problema seja só dos adolescentes. O outro como espectador definir uma relação social é algo precário", pontua.

Saiba quais são os danos aos adolescentes

Segundo informações do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), o vapor emitido pelos aparelhos pode causar ou aumentar as chances de infecções pulmonares, como enfisema pulmonar, e também salienta que os dispositivos não são seguros, podendo também causar dermatite, doenças cardiovasculares e até mesmo câncer.

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Do ponto de vista médico, Messas afirma que o otimismo inicial com o eletrônico, em termos de nocividade, vai sendo abandonado à medida que a ciência avança. "Em primeiro lugar, já se sabe que a quantidade de nicotina liberada por um cigarro eletrônico pode ser enorme, chegando a ser um maço inteiro, em apenas um cartuchinho. E não se tem certeza de que não há de fato combustão do tabaco," diz.

"E em segundo, porque as experiências internacionais vêm mostrando que o uso cigarro eletrônico é fortemente associado com o risco de se tornar usuário e dependente do cigarro tradicional, principalmente nos jovens," relata o médico.

Há também outros riscos atribuídos às substâncias químicas presentes no líquido, que podem causar danos às moléculas, que mantêm as células do endotélio juntas, fazendo com que veias e artérias fiquem mais vulneráveis à formação de placas de gordura e cálcio, aumentando o risco de complicações como o acidente vascular cerebral (AVC), especialmente em mulheres que fazem uso de pílula anticoncepcional.

"Muitas vezes, quando a inflamação acontece na parede do endotélio, que recobre as artérias, ele pode ser lesionado e deflagrar eventos cardiovasculares agudos, como infarto e síndrome coronariana aguda. A nicotina também tem influência no coração, porque aumenta a frequência cardíaca e a pressão arterial", explica Jaqueline Scholz, cardiologista e especialista da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), em ações contra o tabagismo.

Levantamento feito pela Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) em 2019, apontou que a proporção total de fumantes entre alunos de 13 a 17 anos foi de 6,8%, sendo maior entre os meninos (7,1%) em relação às meninas (6,5%). Considerando os estudantes de 13 a 15 anos, o percentual que experimentou cigarro alguma vez na vida, caiu para (19,20% em 2015 para 15,61% em 2019), entre os meninos, o que não foi observado entre as meninas (18,90% em 2015 para 18,43% em 2020).

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No mesmo período, em relação ao uso do cigarro eletrônico pela primeira vez, os maiores percentuais foram observados entre os alunos de 13 a 17 anos, da rede privada de ensino em todas as grandes regiões do Brasil. O estudo concluiu que na região Centro-Oeste os percentuais relativos à experimentação do vape, também foram expressivos, (23,6% na rede pública e 24,3% na rede privada de ensino). Já os menores percentuais de experimentação ocorreram entre os escolares da rede pública das regiões Nordeste (10,3%) e Norte (11,9%).

Para o psiquiatra Guilherme Messas, já existem evidências que mostram que a nicotina compromete a maturação cerebral. "De modo algum deveria ser usada por jovens ou adolescentes. E de acordo com o médico, a questão fica pior nas mulheres, já que há um comprometimento hormonal. "Isso se acrescenta aos riscos que já se conhecia dos cigarros, no que se refere à lesão pulmonar direta, pois a tendência de quem usa eletrônicos é ficar muito mais tempo em contato com a substância," diz.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), reportou que mais da metade dos jovens de 15 a 24 anos que usam a Juul (marca de cigarros eletrônicos) não tinham conhecimento de que estavam consumindo um produto com nicotina. Inclusive, em 2019, o CDC nomeou a Evali (sigla em inglês para lesão pulmonar associada ao vaping) como sendo a doença pulmonar grave, que matou 26 pessoas em 1.299 dos casos relacionados ao uso de cigarro eletrônico, na época.

Em evento realizado em março de 2020, pela American Heart Association (AHA), ONG dedicada no combate de doenças cardiovasculares, os pesquisadores relataram que 1 em cada 4 alunos do ensino médio disseram ter usado um cigarro eletrônico. Segundo a publicação, muitas crianças e seus pais acreditam falsamente que os dispositivos são seguros.

No entanto, um estudo feito pela mesma organização em 2021, descobriu que os novos dispositivos vaping vendidos nos EUA, por exemplo, podem prejudicar o funcionamento dos vasos sanguíneos em níveis semelhantes aos da fumaça do cigarro tradicional.

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A pesquisa, realizada em ratos, também revelou que um dos dispositivos mais recentes, que aquece o tabaco em vez de queimá-lo, fornece nicotina em mais de sete vezes em relação aos cigarros eletrônicos da geração anterior.

O estudo comparou os efeitos da fumaça do cigarro e do ar limpo com nove produtos vaping, incluindo um produto de tabaco "que não queima", um dispositivo vaping ultrassônico, um cigarro eletrônico de geração anterior com nicotina de base livre e cápsulas de sal de nicotina em três sabores.

Depois de uma sessão de cinco minutos de exposição, os aerossóis de todos os produtos vaping prejudicaram agudamente a função endotelial dos ratos. A dilatação dos vasos caiu entre 40% e 67% para todos, exceto os que foram expostos ao ar limpo. O efeito foi comparável ao nível de comprometimento dos vasos sanguíneos, 67%, causado pelos cigarros tradicionais.

Os pesquisadores também mediram a concentração de nicotina no sangue, descobrindo que era 8,7 vezes maior em ratos expostos ao produto de tabaco aquecido, do que em ratos expostos ao aparelho ultrassônico. O nível do produto de tabaco aquecido foi 7,3 vezes maior do que o cigarro eletrônico da geração anterior.

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