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Um blog de pai para filha

Curtindo a fossa adoidado

Não via a hora de te deixar na escolinha para enfim poder ficar triste em paz. Curtir uma mini-fossa-express no caminho para o trabalho. Quem sabe até ouvir um Legião? Mas não

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Por Victor Sá
Atualização:
Arte: André Bonani Foto: Estadão

"Oh! que saudades que tenho Da tristeza em minha vida,... Que os anos não trazem mais."

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trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=y8AWFf7EAc4

Não exatamente da tristeza - essa tem por hábito ser uma companheira fiel- mas saudade do ritual ingênuo, banhado em clichês juvenis, chamado fossa.

Não estou falando de dor, e muito menos depressão. Me refiro àquela fossa/álibi/salvo conduto para os comportamentos mais absurdos. Aquele momento em que você está triste. Sofreu um golpe, um fracasso, uma dor e por isso se permite coisas que normalmente evitaria.

Veja, pequenina, quando jovens sofremos muito. Na adolescência principalmente. Tem um lance de drama, ego e imediatismo que torna tudo muito intenso. Não que tenha amadurecido, mas a maneira de lidar com as dores da vida mudou radicalmente.

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Desde que você chegou, minha miudinha, tem sido bem difícil curtir uma fossa. Os dramas seguem todos aí, mas falta tempo. Não cabe mais todo aquele ritual:

Ouvir Smiths em looping. Parar de ouvir tudo que lembra o motivo da dor (em casos de término de relacionamento, por exemplo, é meio qualquer música). Beber. Se abrir para amigos, colegas e completos estranhos se expondo de maneira vexaminosa. Beber. Vergonha. Ressaca. Arrependimento. Beber. Longas caminhadas contemplativas. Sensação estranha de superioridade por achar que conhece a dor mais do que ninguém. Ouvir conversa dos outros nas ruas de maneira condescendente e irônica. Beber. Escrever em um caderninho amassado com a certeza de que está fazendo boa poesia. Publicar em um blog. Se arrepender amargamente depois. Beber. Ligações estúpidas no meio da madrugada. Beber. Ir ao cinema sozinho e ter certeza de que só você entendeu o filme. Chorar no cinema. Beber. Chorar no ponto de ônibus. Sacar a beleza de cenas absolutamente vulgares e cotidianas; escrever no blog a respeito. Beber. Andar de metrô sem destino certo. Chorar no metrô. Beber. Sair com a mesma roupa dias seguidos. Ah, fumar quatrocentos mil cigarros durante todo o processo.

Querendo ou não, a fossa tem todo seu valor terapêutico. Uma maneira quase performática em lidar e expurgar a dor. Pelo menos era a maneira que eu fazia e aparentemente funcionava. Acho. Não sei. Funcionava?

Fato é que agora, por mais miserável que esteja me sentindo, tenho que acordar e cantar "Meu pé, meu querido pé que me aguenta o dia inteiro uouuuuo!.... Banhinho é bom! Banhinho é muito bom!" e seguir toda nossa animada rotina de mamadeiras, chupetas e banhos com patinhos laranjas.

Por exemplo, dia desses estava arrasado. Algumas coisas não deram certo e acordei querendo sumir. Não via a hora de te deixar na escolinha para enfim poder ficar triste em paz. Curtir uma mini-fossa-express no caminho para o trabalho. Quem sabe até ouvir um Legião? Mas não foi possível. Quando você entrou no carro, na hora, reclamou: "Que chulé! Que fedo! Sai sujeira, sai do carro do papai! Carro Cascão!" De fato, tinha esquecido uma camisa suada lá na noite anterior e estava tudo bem fedido. Então, a primeiríssima providência após te deixar na escolinha foi lavar o carro e comprar aqueles negócios de cheirinho. No caminho, ainda passei na farmácia. Não para comprar ansiolíticos, antidepressivos, ou coisas assim. Fui comprar álcool em gel mesmo que tinha acabado. Aproveitei e comprei sabonetes antibacterianos. A propaganda jurava proteger crianças de germes.

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Aparentemente, bem longe da sarjeta, minha fossa hoje em dia é bem mais limpinha. Debaixo dos laranjais.

Amor, Papai. 25.08.16

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